"A vida é de quem se atreve a viver".


Foto: Leninha Caldas
Carta a uma jovem senhora

Li sua carta, dirigida ao Senado e também ao povo brasileiro. Portanto, sou uma das milhões de destinatárias e não deixo carta sem resposta, considero uma grosseria.
 
Você tem sido alvo de muitas grosserias e brutalidades, tanto ontem como agora, da parte de um Brasil tacanho, misógino, hipócrita, racista ou, numa palavra que resume todos esses adjetivos e outros afins – careta.

Sendo quase da minha idade, você deve ter usado muito essa palavra durante a juventude, não? Ainda uso muito, gosto dela por sintetizar tudo que abomino e recuso neste mundo.

Somos da geração “que sonhou um dia jamais envelhecer”, como disse o Chico Botelho (1948-1991), cineasta paulista, no documentário "A longa viagem", de 1984.

Durante a juventude, em tempos de ditadura de velhos generais, lutamos, cada uma à sua maneira, pelo que nos movia – a liberdade. Havia as militantes dos movimentos e organizações, como você.

Havia as “desbundadas”, que queriam apenas viver livremente a juventude – o que já era querer demais, naqueles tempos duros.

E havia as “hippies de esquerda”, expressão que o Domingos de Oliveira usa em um de seus deliciosos filmes da maturidade  e encontrei exata para dizer o que fui e ainda sou, de certa maneira.
Precisávamos, todas, da senhora liberdade. Para pensar, para amar, para viver. Com Caetano Veloso, dissemos “sim ao sim e não ao não” e quisemos que fosse proibido proibir, frase escrita nos muros do maio de 1968 que de Paris se espalhou pelajuventude do mundo afora.

Para ler os livros que quiséssemos e ver os filmes que quiséssemos, por que não? Para amar quantos e quantas quiséssemos, da maneira que quiséssemos.

Para casar ou não, para ter filhos ou não. Para viajar sozinhas. Para ser mães solteiras, sem vergonha. Amávamos os Beatles, os Rolling Stones e o Che Guevara, também. Líamos e aprendíamos, com Gaiarsa e Reich, a “romper a couraça muscular do caráter”.

Líamos o romance “Cleo e Daniel”, do Roberto Freire que vale a pena, escritor e psicanalista, e com ele aprendemos que “sem tesão não há solução”.

Com Leila Diniz, a musa morena do Domingos e depois do Ruy Guerra, aprendemos a libertar nossas barrigas grávidas para o sol e o sal do mar. Queríamos a escola livre e sem medo de A. S. Neill.

Algumas queriam abrir as “portas da percepção”. Mas não queríamos liberdade só para nós, queríamos que ela fosse para todas, para todos. Para o Brasil.

Admirávamos e éramos solidárias com vocês, que conheceram os porões, as torturas, e muitas encontraram ali a morte. Não tínhamos disciplina para participar da luta organizada, mas muitas de nós fomos parar também nas prisões, peixinhas desavisadas que caíamos nas redes da repressão, que eram largas e poderosas.
 
Sobrevivemos. Você sobreviveu. E foi com muita alegria que, depois de lutar pela Anistia, pedir eleições Diretas Já, vimos chegar a tão sonhada liberdade, a volta dos exilados, a libertação de quem estava nas prisões por motivos políticos, e as primeiras eleições diretas, finalmente. Meu primeiro voto foi para o Lula. Perdemos. O segundo, também. Perdemos de novo. O terceiro também. Perdemos de novo.

Mas tudo bem, eram as regras do jogo, ainda que um jogo cheio de trapaças. Finalmente, elegemos Lula. Que alegria, que festa na Esplanada! Um operário nordestino no Planalto, parecia um sonho. E depois elegemos Lula outra vez.

Em 2010, levamos a bandeira vermelha com seu nome para as ruas da cidade, vestimos a camiseta vermelha e votei com muita alegria e orgulho em você, a sobrevivente dos porões, a primeira mulher a presidir o Brasil.

Em 2014 a luta foi dura, “eles” já estavam muito bravos com tanta ousadia. Fomos de novo para a rua gritar seu nome, a minha camiseta vermelha tinha o seu rosto e a legenda “Coração Valente”.

E assisti estarrecida o grito canalha contra você num estádio de futebol lotado de camisetas amarelas. Você é tão valente e defensora da liberdade que disse preferir as vaias da democracia que o silêncio da ditadura.

E por um ano e pouco seguiu o seu segundo governo, atribulado, muito atribulado. Em abril deste ano, fui para a Esplanada num domingo tão triste para quem ama a gente brasileira mais pobre, para quem quer e sonhou sempre com um Brasil livre e justo...

E vi o cinismo dos que exibiram os infames cartazes dizendo “tchau, querida”. Chorei muito aquela noite. Mas você é querida de verdade por muitas de nós que nos reconhecemos em você.

Por muitas que conseguiram, nos últimos anos, alimentar melhor os filhos, mantê-los da escola. Por muitas que foram as primeiras da família a chegar a uma universidade pública. Que trataram melhor da saúde, sua e da família, com remédios de graça.

Você, minha quase vizinha, já deve estar arrumando a bagagem para deixar o singelo palácio alpendrado da Alvorada. O Brasil careta não te aguentou. Mas o outro Brasil, o que te chama de Dilmãe, e sinceramente te diz querida, vai sentir a tua falta.

Aproveite a liberdade que te deram, dessa vez contra a tua vontade. Uma vez você disse que, quando deixasse de ser Presidenta, ia libertar das tintas a prata dos cabelos.

Agora você pode, jovem senhora. Pode bicicletar livre pelas ruas de onde quiser; pode levar sua velha mãe, sua filha, seus netinhos para visitar a pátria dos ancestrais.

Que tem uma capital de nome tão lindo, Sófia, que me lembra a antiga sabedoria da Grécia, que fica logo ali, vizinha. Abre-se para você o tempo da sabedoria das jovens senhoras. Aproveite. E dê notícias.

Da sua eleitora, admiradora e companheira de geração, Zuleica Porto.

Você não tem direito de postar comentários

Destaques

Mais Artigos