Bolsonaro vai à Disney

Dioclécio Luz* 

Faltando dois dias para a posse de Lula, prestes a perder o emprego onde não costumava aparecer para trabalhar, o ex-presidente Jair Bolsonaro fugiu para os Estados Unidos, mais exatamente para Orlando, onde está o Walt Disney World 

A fuga para Disneylândia é coerente com a sua história: ele nunca foi muito de trabalhar, seu maior talento é a diversão. E não é de hoje. O deputado federal Jair Bolsonaro passou 28 anos na Câmara sem fazer nada de produtivo; ele ocupava a tribuna para vomitar seu ódio contra a esquerda e pedir a volta da ditadura. Foi uma nulidade, um estupendo exemplo da mediocridade que às vezes acomete o Congresso Nacional. Antes do parlamento, porém, ele passou pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). E no Exército ele se anunciou como um fiasco, uma vergonha para a farda - Bolsonaro feriu o regimento, quebrou a hierarquia e foi processado por planejar um ato terrorista. Saiu das Forças Armadas pela porta dos fundos.  

Essa história não é nova. Ela mostra a absoluta incapacidade do ex-presidente dialogar com quem quer seja e sua total falta de preparo para administrar qualquer coisa. Daí, nos quatro anos em que disse governar o Brasil, Bolsonaro promoveu um desastre em todos os setores. Mexeu até no caráter da população. Graças a ele muita gente perdeu a vergonha em se assumir como racista, LGBTfóbico, machista, grosso, burro, estúpido, golpista. Bolsonaro disse a essa gente para sair da fossa. E ela saiu. 

O ex-presidente gosta mesmo é de se divertir. Ele sempre deu um jeito de escapulir do trabalho para passear, visitar uma padaria, circular de moto, tomar banho de mar, cavalgar nas festas do agronegócio. Estudiosos mostraram que Jair Bolsonaro “trabalhou” menos de 5 horas por dia. Bem, depois de passar 30 anos na Câmara e não fazer nada o que se esperaria dele? 

O problema é que suas diversões eram bancadas pelo Estado e contavam com o apoio das Forças Armadas. Por diversas vezes ele pegou um jet-ski da Marinha, botou a filha na garupa, e foi se exibir para banhistas bolsonaristas, fazendo acrobacias, piruetas, essas coisas que playboys fazem nas praias. Perguntei a Marinha (via Lei de Acesso à Informação, em 12/04/2022) se o que eu tinha visto era verdade: um presidente tinha ido se divertir na praia com um equipamento da Força! A resposta (assinada pelo GSI) é patética, ridícula. Ela tenta dar uma seriedade ao que não é sério. Conversa fiada. Eis: 

“Quanto à utilização de moto aquática da Marinha do Brasil pelo Presidente da República, no litoral do Estado de Santa Catarina, conclui-se que foram planejadas e implementadas medidas de segurança visando garantir a integridade física e moral do Presidente da República e familiares, por ocasião da prática de atividades em meio aquático, no litoral do Estado de Santa Catarina”. 

Não foi a primeira vez que o ex-presidente usou equipamentos das forças policiais para a sua diversão. Em Brasília, no dia 31 de maio de 2020, por exemplo, em uma das (muitas) manifestações contra a democracia, Bolsonaro demonstrou seu apoio aos golpistas desfilando para eles como um cowboy: pegou um cavalo da Polícia Militar e, feliz, saiu cavalgando pela Esplanada dos Ministérios, para delírio da garotada, digo, dos seus apoiadores. Era a sua Disney. É ilegal pegar um cavalo da PM? Claro. Mas a PM do DF – a mesma que acompanhou com redobrado carinho as ações dos terroristas em Brasília no dia 8 de janeiro – aceitou.  

Esses brinquedinhos de Bolsonaro não lhe pertencem, são equipamentos do Estado, das forças militares, mas o ex-presidente se apropria e usufrui como se fosse particular. Fez isso durante todo o mandato. Os gastos com o cartão corporativo, por exemplo, mostram  que ele usou dinheiro público para se exibir e se divertir com os amigos – a sociedade bancou suas farras com os amigos motoqueiros. Bem que o ex-presidente – como menino maldoso e esperto - tentou esconder esse fato, decretando sigilo de um século para as festinhas bancadas pelo cartão, mas o novo governo não aceitou. 

Cada vez que Bolsonaro ia para um evento era acompanhado por centenas de militares – os tais seguranças e assessores. É de se imaginar a felicidade desse reizinho medíocre que chegava nos locais para se divertir tendo ao lado um monte de militares. Eles garantiam a festa do reizinho. Com esse aparato Bolsonaro participou de motociatas por todo país sem usar capacete. Isso é ilegal, claro. As forças militares, porém,  não proibiram. Perguntei (via lei de acesso) à Polícia Militar de Pernambuco (um dos estados onde ele se divertiu numa motociata) por que foram lenientes com Bolsonaro quando ele descumpriu a legislação de trânsito. Resposta da PM de Pernambuco: “o trajeto percorrido no interior de Pernambuco foi numa BR, sendo de competência legal da Polícia Rodoviária Federal (PRF)”.  

As imagens e os testemunhos mostram que não foi bem assim: Bolsonaro transitou em rodovias urbanas, estaduais e federais, quase sempre sem capacete. De qualquer forma, fui saber da PRF (via Lei de acesso) porque aceitaram que uma pessoa circulasse de moto sem capacete numa rodovia federal.  Resposta da Polícia Rodoviária Federal: 

“As informações solicitadas envolvem operação de caráter estratégico, envolvendo o Excelentíssimo Senhor Presidente da República, cujo planejamento foi mormente idealizado pelo Gabinete de Segurança Institucional-GSI, sendo que a PRF apenas apoiou a logística do evento”. 

E assim aprendi com a PRF que dirigir moto sem capacete é parte de uma operação estratégica! O Gabinete de Segurança Institucional (GSI) foi responsável pela operação e a PRF obedeceu, mesmo sendo ilegal. Nesse país que Bolsonaro e os militares criaram, nesse país de fantasia, essas coisas eram reais. 

Na Disney é assim. Porque a Disney não é um lugar, mas um símbolo, é o sonho de paraíso do ex-presidente. A presidência, o poder e a exibição que marcam a função, cristalizaram a Disneylândia de Bolsonaro. E ele foi para a verdadeira, em Orlando – a terra do Pateta e do ratinho Mickey – cogitando ficar ali para sempre. Menino teimoso, não aceitou o resultado das urnas e a perda da função e foi esconder sua frustração na Disney de verdade. 

É sintomático que o último ato de Bolsonaro como presidente tenha sido esse. Ele mostra sua altura. Aproveitando tudo o que o poder ainda lhe permitia, pegou um avião militar, da Força Aérea Brasileira (FAB), e fugiu para Disneylândia com uma comitiva de 30 serviçais, a maioria militares. 

No dia 7 de janeiro, via lei de acesso, fiz algumas perguntas ao novo governo. A resposta do Gabinete de Segurança Institucional chegou no dia 23 de janeiro. Eis: 

- A viagem do ex-presidente foi a trabalho ou passeio? 

A viagem presidencial para Orlando, Flórida, EUA, no dia 30 de dezembro, tratou-se de uma atividade privada do Presidente da República, acionada pelo Gabinete Pessoal do Presidente da República.  

- Se foi a passeio, qual o motivo de utilizar o avião da FAB? 

O emprego da aeronave VC-1 para deslocamento do Presidente da República foi realizado em consonância com a legislação em vigor. 

- Quais servidores acompanharam o presidente nessa viagem? Que função desempenharão em apoio ao presidente? 

A aeronave VC-1 transportou a Comitiva Oficial, Comitiva Técnica e demais membros da Comitiva de Apoio (segurança imediata), além das tripulações, da viagem presidencial para Orlando, Flórida, nos EUA.  

Consta que mais de 30 pessoas acompanharam o ex-presidente no seu último passeio como presidente.  

E assim termina a história de um menino mal que virou imperador do Brasil. Como se constatou depois, e o mundo inteiro viu na TV, no Palácio da Alvorada, ficaram sinais de sua fúnebre e nojenta passagem pelo poder. Mas quem melhor relata o cenário pós-Bolsonaro é o colombiano Gabriel Garcia Márquez no romance “O outono do patriarca”. É como se ele narrasse o que restou do Palácio, antiga morada do bisonho e ridículo presidente do Brasil que, terminado seu mandato, fugiu, para se esconder num parque de diversões. O romance começa assim... 

“Durante o fim de semana, os urubus meteram-se pelas sacadas do palácio presidencial, destroçaram a bicadas as malhas de arame das janelas e espantaram com suas asas o tempo parado no interior, e na madrugada da segunda-feira a cidade despertou de sua letargia de séculos com uma morna e terna brisa de morto grande e de apodrecida grandeza”.
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*Dioclécio Luz é jornalista e escritor. Publicou artigos e livros sobre arte, cultura, comunicação e meio ambiente. É autor do livro “A escola do medo: vigilância, repressão e humilhação nas escolas militarizadas”, entre outros.