Os militares se consideram o quarto poder e, às vezes, o “poder moderador” para legitimar e justificar as intervenções políticas
Por que o Brasil tem medo das Forças Armadas?

Dioclécio Luz (*) -

O Lago Paranoá, em Brasília, tem uma meia dúzia de pontes. Uma delas, com 450 metros de extensão, ligando o Plano Piloto (a cidade que tem forma de pássaro) ao bairro denominado Lago Sul, foi desenhada por Oscar Niemeyer. O arquiteto deu-lhe o nome de “Ponte Monumental”. O nome mudou, porém, quando os ditadores foram para a sua inauguração, em 1976. Ernesto Geisel, o general-ditador em exercício, resolveu homenagear o colega general antecessor, mudando seu nome para general-ditador “Costa e Silva”. A “Ponte Costa Silva” mantém esse nome até hoje.

Ora, Costa e Silva foi o sujeito que, no dia 13 de dezembro de 1968, lançou o Ato Institucional nº 5 (AI-5), mostrando que a ditadura estava ali para liquidar com todas as leis existentes, oficializar o sequestro, tortura e morte, de quem fosse contra o regime. Portanto, há em Brasília uma ponte homenageando um criminoso fardado.

Em outubro de 2021 a Câmara Distrital aprovou projeto de lei do deputado distrital Leandro Grass (PV), determinando a substituição do nome da ponte: ao invés de um general criminoso, entraria Honestino Guimarães, alguém que lutou pela democracia. Estudante da UnB, Honestino foi preso, torturado e morto pelos militares. Seu corpo jamais foi devolvido pelos assassinos. Em dezembro de 2022 o governador Ibaneis Rocha, um bolsonarista de primeira linha, vetou o projeto. Ibaneis, entre outras barbaridades, colocou militares no governo e criou as Escolas militarizadas.

No plenário da Câmara Leandro Grass anunciou a verdade:

“Se a gente for na Alemanha não vamos encontrar nenhuma ponte, nenhum monumento em homenagem a Hitler. Se for a qualquer país democrático, você não vai encontrar nenhuma homenagem a assassinos, torturadores e violadores do direito. Por que, então Brasília deveria permanecer nessa situação?”

Medo.

Mas não é só em Brasília. O Brasil tem medo dos militares. Medo, inclusive, de um novo golpe. A história mostra que o “glorioso Exército brasileiro”, como se autointitula a Força, já promoveu pelo menos quatro golpes de Estado.

O primeiro foi a derrubada da monarquia, em 1889, batizada de “proclamação da República”. O segundo foi em 1937 - os militares criaram um documento falso (o “Plano Cohen”) onde se anunciava uma pretensa ameaça de ataque comunista. Só uma intervenção militar salvaria o Brasil. Com essa mentira os militares deram o golpe, entregaram o governo para Getúlio Vargas, e nomearam a ditadura de “Estado novo”.

Em 1961, quando o presidente Jânio Quadros renunciou, tentaram um novo golpe. Conforme a Constituição, seu vice deveria assumir. Óbvio. Era a lei. Mas os militares não queriam a lei. Partiram para cima do Congresso. Ameaçaram o golpe. A solução foi fazer um plebiscito para saber da população se queria um parlamentarismo (onde o presidente não manda, como queriam os fardados) ou presidencialismo. Deu presidencialismo. E os quarteis não gostaram. Tanto que três anos depois, com o apoio de empresários, igreja, e principalmente dos Estados Unidos, deram outro golpe. Em 1964, com o mesmo argumento (salvar o país de um ataque comunista), derrubaram o presidente eleito João Goulart e instituíram uma ditadura que batizaram de “Movimento popular” ou “Contrarrevolução”.

Veio 2013. Era o governo Dilma Rousseff e o povo estava nas ruas, com ampla e simpática cobertura da mesma imprensa que fez o golpe de 1964, pedindo a saída da presidente e... intervenção militar. Como assim? O povo pede um golpe de Estado? Ao que parece estava ocorrendo uma nova invasão comunista no Brasil.

Com a ajuda da velha imprensa, a sociedade foi informada que o PT de Dilma, era um partido de corruptos e estava fazendo do Brasil uma Venezuela, isto é, comunista. Os manifestantes nas ruas, pelo visto, tinham uma boa relação com os militares, afinal pediam um golpe e usavam os mesmos argumentos do golpe de 1964: corrupção e comunismo. Ou eram os militares infiltrados? Bem, graças a uma estratégia de disseminação de mentiras nas redes sociais (que contou com o apoio do governo norte-americano e de especialistas no assunto) até hoje os seguidores do presidente Bolsonaro acreditam que a Venezuela é um país perigoso para o Brasil.

As manifestações de 2013 estavam contaminadas pelos interesses dos militares em ocupar o poder. Em todo o país havia faixas pedindo a “intervenção militar”. Foram as Forças Armadas que mandaram fazer essas faixas? Ou foi uma contribuição dos agentes da CIA, experientes assassinatos de democracias no mundo? Talvez elas tenham sido feitas pelos eleitores de Bolsonaro – defensores da violência, dos armamentos, e claro, do militarismo. Nenhum agente da ABIN, nenhum jornalista da velha imprensa, ousou apurar o fato. Não se sabe quem comandou essa estratégia, mas deu certo: em 2016 Dilma caiu por conta de um golpe parlamentar - sem tanques nas ruas, mas com as digitais da FFAA.

Esse tipo de golpe já havia sido testado e aprovado no Uruguai, Equador e Bolívia. O “Departamento de extermínio de democracias” existente nos Estados Unidos viu que era mais fácil derrubar governos usando o parlamento amigo que promovendo golpes com tanques nas ruas, como fazia antigamente. Além do mais, esse tipo de golpe vem legitimado por um “processo legal”.

O fato é que os militares, ou seus aliados, derrubaram uma presidente eleita sem disparar um só tiro. Quem tem imprensa amiga e parlamentares amigos vai longe. Mas a história não acaba aí. Ela começa aí.

Em 2018 vieram as eleições para presidente. O candidato que liderava as pesquisas era Luís Inácio Lula da Silva. Como impedir que ele participe das eleições? É hora da Lava Jato fazer a sua parte. Lula ser humilhado publicamente e diariamente pela velha imprensa não era o bastante. As pesquisas ainda o colocavam no alto. Então, a saída era botar Lula na cadeia. Havia o criminoso, faltava o crime. E Sérgio Moro, o herói do momento, um juiz de primeira instância de Curitiba, em aliança com o Ministério Público Federal, conseguiu a proeza jurídica de mandar Lula para a prisão sem ter prova do crime. Até aí os militares estavam quietos.

A defesa do ex-presidente reagiu. Levou o caso ao Supremo Tribunal Federal, alegando inconstitucionalidade da prisão uma vez que não estava esgotado o trânsito em julgado . Diz a cláusula pétrea da Carta Magna:

Art 5º, LVII – Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

A Constituição, nesse artigo, consagra o princípio da “presunção de inocência”, ou “princípio da não culpabilidade”. Logo, o esperado era que o STF decidisse que a prisão era ilegal e determinasse a soltura do ex-presidente.

É quando os militares entram em cena novamente.

Às vésperas da votação do habeas corpus de Lula no STF, no dia 3 de abril de 2018, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, resolve se manifestar. Em nota construída com o Alto Comando, como disse depois, através de twitter fez a ameaça:

Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.

O que ele disse, em outras palavras, foi: “se a corte acatar o pedido de habeas corpus para Lula (permitindo que ele se candidate a presidente), os tanques irão para as ruas”. A mensagem foi lida no Jornal Nacional da TV Globo, porque esse tem sido papel da emissora na história. Deu certo: o STF decidiu contra o habeas corpus. Lula foi mantido preso, Bolsonaro foi eleito, e hoje o governo está nas mãos dos militares – são 6 mil ocupando postos civis – liderados por um cara que foi praticamente expulso do Exército, foi um deputado medíocre, não consegue falar uma frase inteligente, e todos os dias prova ao país que, além de ser um pessoa perversa, não tem conhecimento sobre nada, nada, nada.

O resultado desse governo militar com um estulto no comando:

O governo de Jair Bolsonaro é o pior da nossa história. E não porque ele fracassou. A tentativa confessada pelo presidente de extrema direita de desconstruir o estado brasileiro foi bem-sucedida. Basta olhar para o Ibama, a Funai, a Fundação Palmares, a Biblioteca Nacional, o Ministério da Saúde, o Itamaraty, a extinta política de desarmamento, o Ministério da Cultura que já não temos, o Ministério da Educação aparelhado por religiosos fanáticos e provavelmente corruptos, a Polícia Rodoviária Federal que ajuda a matar pessoas pretas nas favelas do Rio de Janeiro”. (Intercept em 23/07/22)

As urnas e as armas

Hoje as Forças Armadas (FFAA) querem intervir nas eleições, investigando a correção das urnas eletrônicas. É evidente que as urnas não constituem problema para as eleições. É evidente que não é papel dos militares averiguar isso. O papel das Forças Armadas está determinado nos artigos 142 e 143 da Constituição de 1988. E lá não tem isso. Atacam as urnas porque as pesquisas anunciam que Lula pode ganhar as eleições e teriam que sair do governo junto com Bolsonaro, dando fim a intervenção militar.

Os militares não admitem ficar de fora do comando do país. Não porque conhecem de ciência política ou administração pública, economia ou, sei lá, meio ambiente, mas porque têm as armas, ora. O poder bélico que possuem lhes diz que não devem se submeter a quem não tem. As FFAA não admitem ser comandadas por civis; o país não pode ser comandado por civis.

O gesto de “fiscalização das urnas”, uma exposição patética de um poder que não aceita ficar fora da política, sinaliza que as Forças Armadas querem uma revisão do conceito de República: não seriam três poderes no Brasil, e sim quatro. As Forças Armadas se consideram e agem como se fossem o quarto poder. Daí fazem política dentro e fora dos quarteis. Isso fere o Estatuto deles, mas às favas as normas. Em maio de 2021 o general Eduardo Pazuello (aquele que virou ministro da Saúde e foi acusado pela CPI do Senado de cometer meia dúzia de crimes) subiu num palanque com o presidente. Foi aberto um procedimento administrativo interno (“Apuração de transgressão”) no Exército que concluiu pela sua inocência. Para evitar questionamentos da sociedade civil – que paga os salários, roupa, transporte e moradia dos fardados – decidiram colocar o processo em sigilo por um século! Jogaram a sujeira para debaixo do tapete.

Os militares não sabem lidar com a administração pública fora dos quarteis. A formação deles não lhes dá competência para isso. Cuidar de energia ou saúde pública é bem diferente de prover a munição de um tanque. Mas existe um problema maior, bem maior: a ideologia que domina as FFAA e determina o seu conceito de patriotismo e civismo. Os militares entendem como patriotismo o projeto capitalista e neoliberal. E o que não se enquadra é considerado “comunista” ou algo parecido. Sim, a noção de comunismo que possuem é velha, atrasada, fora da realidade, uma fantasia, mas usada para ilustrar um inimigo que precisa ser combatido aqui dentro do país. O governo Bolsonaro, sob o comando dos militares, revela uma radical defesa do mercado. Por exemplo, o militar (ou civil) que comanda a Petrobras, atua para fazer com que a empresa dê lucro para os seus acionistas, fazendo a felicidade de um pequeno grupo de bilionários, ao determinar como política da empresa a paridade com os preços internacionais. Isso às custas do povo brasileiro que paga caro pelos combustíveis. Isso começou com Michel Temer e vai até hoje. Antes dele, Lula e Dilma atuavam para que a empresa desse lucro – e ela dava – mas mantendo os combustíveis a preços mais ajustados à realidade nacional. Os generais patriotas desse governo defendem a privatização da Petrobras e de todas as estatais brasileiras. As Forças Armadas também estão nesse governo que atua para negar os direitos dos trabalhadores e demonizar todas as correntes ideológicas de esquerda (o presidente já falou em “metralhar” quem for contra a sua ideologia).

Isso parece coisa copiada dos Estados Unidos. E é. Nossos militares foram amestrados pelos norte-americanos via Escola das Américas e Escola Superior de Guerra para a adoção total desse projeto. Isso é antigo, antecede a primeira guerra, passa pelo Macarthismo-USA e chega ao século XXI: os militares continuam dizendo que o grande inimigo da nação é o comunismo e que ele está contaminando as mentes e promovendo a corrupção no país.

Um delírio oportunista ou algo assim.

Promover golpes e invadir nações é central na história dos Estados Unidos. Toda essa aura democrática, construída no Brasil pela velha imprensa, sósia do projeto de poder norte-americano, objetiva ocultar o costume norte-americano de derrubar democracias para impor governos tiranos e manipuláveis. As Forças Armadas brasileiras aprenderam com os norte-americanos que o grande inimigo do país é o tal do “inimigo interno”, e que esse inimigo – comunista – é a “esquerda”, “partido de esquerda”, “pensador de esquerda”, “professor de história”, ou somente “professor”, e os tais “movimentos sociais”, caso dos Sem-terra, por exemplo. Nos quarteis, provavelmente, se ensina essa antiga lição. Em março de 2021, o atual ministro da Defesa, general Walter Souza Braga Netto, autorizou a Ordem do dia em que se trata o golpe de 1964 como um movimento popular; as Forças Armadas teriam saído às ruas com "a responsabilidade de pacificar o país" para "garantir as liberdades democráticas".

A história não é história

Quem se depara com manifestações do tipo fica pensando que: ou os militares vivem em outro planeta, ou estão delirando, ou a história contada sobre o golpe 1964 nos mais diversos livros, documentos, depoimentos, fotografias, é tudo falsa.

Como negar o que houve? O congresso foi fechado, a censura foi imposta e as leis foram jogadas no lixo pelos ditadores; milhares de pessoas foram sequestradas, torturadas, mortas; houve ocultação de cadáveres; a corrupção correu frouxa; milhares de indígenas foram mortos; houve um retrocesso social e cultural...

Tudo isso está registrado, anotado, provado. E mesmo assim generais da reserva ou da ativa, a cada aniversário do golpe, vem a público para elogiar os colegas que estupraram a ordem institucionalizada. Todo mundo sabe que foi ditadura, o planeta inteiro sabe disso, mas os generais insistem na versão deles. Por que a história não é levada a sério?

Na verdade, não é a história que não é levada a sério. É a verdade que não é levada a sério. Como a verdade incomoda as Forças Armadas, então ela tenta impor “a verdade” dos generais. Talvez tenha sido firmado um pacto entre os ditadores de 1964 e a geração seguinte de oficiais. Algo como o ocorrido na Espanha pós-Franco. Relata o escritor Javier Cercas em seu livro Anatomía de un instante que, antes de findar a ditadura do general Francisco Franco, ele se reuniu com os comandantes militares e solicitou que o ideais franquistas tivessem continuidade depois da sua morte. E quais eram os ideais franquistas? Os mesmos dos ditadores do Brasil: alinhamento com os Estados Unidos, demonização da esquerda, implantação de economia de mercado, colocar o Estado a serviço das elites econômicas, instituição de um poder central e tirano como o dele... O ditador Franco morreu em 1975 (sem ser incomodado pelas nações ditas democráticas, claro) e, conforme Javier Cercas, até hoje o Exército espanhol segue suas determinações. O pacto está valendo - a cada dez anos tem golpe na Espanha.

Tudo indica que oficiais das Forças Armadas brasileiras firmaram esse pacto com os ditadores para manutenção dos ideais do golpe de 1964. Daí a insistência em festejá-lo a cada 31 de março, contrariando a história, a verdade e o bom senso. A favor deles conta a Lei de Anistia (nº 6.683/79) assinada pelo general João Figueiredo. A lei foi uma condição imposta pelos militares para devolverem o Brasil aos brasileiros – a garantia de que os assassinos de farda, torturadores, matadores, corruptos, não seriam perseguidos pelos seus crimes. Assim, devolviam aos brasileiros um Brasil completamente arrasado com a certeza, em lei, de que ninguém seria punido. Para garantir a impunidade dos criminosos de farda até hoje as Forças Armadas escondem os documentos que tratam de suas ações na época. Nenhum governo subsequente à ditadura conseguiu esses dados. Conforme Lucas Figueiredo, em seu livro “Lugar nenhum: Militares e civis na ocultação dos documentos da ditadura”, nem mesmo com uma determinação da Justiça – provocada pela Comissão Nacional da Verdade – os militares entregaram os documentos referentes ao período.

Parece existir um projeto estratégico de ocultação de dados para proteger os criminosos e de reconstrução da história. As Forças Armadas vão continuar dizendo que o golpe de 1964 foi um “movimento com apoio popular” e ocultando as informações que tratam de seus atos sujos no período, na tentativa de assim fazer prevalecer a sua versão da história. Algo do tipo: a gente esconde as sujeiras cometidas e conta uma outra história. As Forças Armadas acham que se têm a força podem escrever a história que quiserem. O problema é que todo mundo já sabe das sujeiras cometidas, dos crimes, dos abusos cometidos. De modo que essa versão mentirosa que contam só funciona nos quarteis, onde quem ouve é obrigado a aceitar. Os militares não aprenderam que a verdade não é uma questão de hierarquia, ela não é um comando de quem está acima para quem está em baixo. Também não aprenderam que a história, para ser história, precisa ter verdade dentro dela. Então, não adianta insistir: a terra não é plana e o que houve em 1964 não foi um movimento popular.

Ao que parece ninguém alertou os comandantes militares que ao defender o golpe de 1964 e o regime, estão fazendo apologia ao crime. Afinal, um regime ditatorial significa o fim de todas as leis, a barbárie está de volta e tudo é permitido: roubar, sequestrar, torturar, matar, desaparecer com os corpos. A ditadura é o crime dos crimes, porque ele alberga todos os crimes cometidos em nome do Estado. Tem fim o Judiciário, o Legislativo e o Executivo. Cai a democracia.

É preciso se debruçar sobre a ideologia pregada nos quarteis. Já se viu que ela tem um componente capitalista, neoliberal. Mas é importante registrar que ela está impregnada de uma moral e um moralismo. O conceito de pátria e nação dos militares está associado a valores morais, comportamentos, costumes, tradições, religião. O golpe de 1964 deixou isso bem claro. Pessoas foram presas, artistas foram censurados, não só por se manifestarem contra o golpe, mas porque fumavam maconha, usavam cabelos comprimidos, defendiam o uso da pílula anticoncepcional... O artista mais censurado na ditadura não foi Geraldo Vandré, autor de Para não dizer que não falei de flores, ou Chico Buarque, com dezenas de músicas criticando o regime.

Em nome da “moral e dos bons costumes” Odair José se tornou o artista mais censurado no período. E já que se falou em “moral e bons costumes”, é importante lembrar que no dia 22 de abril de 2020 esse governo militar moralista mostrou como se faz uma “pornô-reunião”. Pela primeira vez na história uma reunião ministerial está proibida para menores de idade tamanha quantidade de palavrões e baixarias ouvidas. Mas parecia o encontro de frequentadores de um cabaré. E os generais estavam lá. Os moralistas estavam todos lá. Freud explica.

Que haja uma moral, ela sempre há. Mas não venham as Forças Armadas dizerem à sociedade civil quais valores deve adotar. Quem tem que decidir que tradições adotar, como se relacionar com os deuses (cristãos ou pagãos), como deve ser a família, o tamanho dos cabelos ou da saia das mulheres, e, principalmente, que política deve ser adotada pelo país (se capitalista, socialista ou comunista) é a sociedade civil, não os militares. A noção de patriotismo e civismo das Forças Armadas requer uma revisão com urgência – o que se ensina nos quarteis, pelo visto, é atrasado no tempo e no espaço. Patriotismo não se resume a cantar o hino nacional e bater continência para o tenente. É preciso deixar bem claro que movimento negro, movimento LGBTQIA+, a luta das mulheres por seus direitos, não é “coisa da esquerda”, e mesmo se fosse, isso não é da conta das Forças Armadas. A luta dos indígenas por seus direitos, idem.

Antigas lições

As manifestações dos militares com relação à política sugerem que nos quarteis ainda se ensinam antigas lições. Uma delas, pelo visto é: nós mandamos neste país. Eles se consideram o quarto poder e, às vezes, o “poder moderador” - essa novidade mofada foi resgatada do cretáceo por algum arqueólogo de farda e jornalistas amigos cuidaram de legitimar, para justificar as intervenções militares de hoje.

Quando se fala em lições da caserna, é preciso levar em conta os métodos usados. Existe uma pedagogia que sustenta o sistema militar, hierarquizado, tirano, ditatorial. Os de cima mandam e os de baixo obedecem – essa é regra, e quem não aceita é punido. É fácil concluir: não existe democracia nos quarteis. Ela, a democracia, não sobrevive a um minuto de conversa entre um oficial e um soldado. Aliás, não existe conversa: o oficial dá ordens, missões, delegações, comandos, determinações, e ponto final.

O filósofo Michel Foucault explica: a pedagogia é vertical e se baseia na vigilância e na punição. É a pedagogia do medo. O regimento militar contém centenas de dispositivos que firmam esse sistema. Ele está presente na formação de todas as forças policiais (incluindo Bombeiros e Polícia Militar). Pode ser que funcione nos quarteis, mas quando ultrapassa os portões e chega à sociedade civil sobrevém o desastre. Quando os militares resolvem ocupar postos e atribuições destinadas a civis, não bastasse o despreparo técnico e profissional, a forma de lidar com os civis é naturalmente conflituosa.

O melhor (e pior) exemplo de desastre que essa pedagogia do medo provoca na sociedade civil está nas escolas que os militares comandam. Colégios Militares (do Exército) e escolas públicas militarizadas (entregues à PM e Bombeiros) se convertem em mini quartéis, onde crianças e adolescentes são submetidos a um regime disciplinar humilhante, opressivo, cruel; são tratados como soldadinhos de brinquedo. Sobre os jovens se impõe um regimento disciplinar similar aos dos soldados adultos, não por acaso o fardamento é uma fantasia de soldado. Os estudantes fazem ordem unida, batem continência para o sargento; as meninas têm que manter os cabelos presos, não podem pintá-los; elas não podem usar brincos, batom, maquiagem. Quem tem cabelo afro deve escondê-los. Nessas “escolas” os jovens são os brinquedinhos dos militares. Nos colégios do Exército, os mais comportados (os mais passivos, obedientes, submissos) ganham títulos de aluno-capitão, ou aluno-tenente, ou coisa parecida – uma brincadeirinha, claro. Nas escolas públicas (da periferia, em sua maioria) entregues à Polícia Militar e aos Bombeiros o tratamento é o mesmo: são brinquedinhos dos militares. Note-se que essa pedagogia cruel, punitiva, opressora, é aplicada a jovens adolescentes, exatamente quando o ser humano está definindo a sua identidade.

É importante registrar que até hoje nenhuma faculdade de educação do país aprovou esse método. Pelo contrário, todas reprovam. A professora Catarina Santos, da Universidade de Brasília, resume: isso é a anti-escola. Afinal, alguém acha que fazer ordem unida ou bater continência para o sargento de plantão, cortar o cabelo de criança como se fosse soldado, contribui para a educação? Só o militar. Eles chamam isso de “disciplina” e “civismo”. Está errado: a disciplina é para o quartel, mas está sendo aplicada a jovens que não são soldados.

Além do mais, o que os militares ensinam sobre civismo é ultrapassado, não serve à sociedade civil. A escola existe para ensinar o aluno a pensar, ter autonomia, questionar a realidade, saber dos seus direitos e deveres – é o contrário do que ensinam os militares nessas escolas. O fato é que eles desconhecem o que é educação. A ideologia do quartel (capitalista, neoliberal) desconhece os grandes mestres da educação no Brasil - Paulo Freire, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, entre outros. Pior, além de desconhecer essa gente, por causa a ideologia do quartel, considera todos eles “comunistas” (embora até hoje os militares não saibam o que é isso).

O fato é que a humilhação presente nas escolas, a invasão da privacidade do estudante, o fato das crianças serem tratadas como brinquedinhos dos militares, agride, no mínimo duas normas legais:  a Constituição Federal (o art. 5º) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90). Agora, se essas “escolas” infringem a lei e se não são consideradas escolas por quem entende de escola, como elas ainda existem? Por que o Exército (e a PM e os Bombeiros) não é denunciado por praticar um crime contra as crianças e adolescentes? Por que não tiram dos militares essa função que não lhes cabe? Resposta: medo. E ele produziu a submissão que gera mais benefícios para os militares.

É o caso do Colégio Militar de Brasília. Ele ocupa uma grande porção da zona central da capital do país: uma área de 240.000 metros quadrados, ou 24 campos de futebol! Ali não falta nada: tem quadra de esportes, ginásio coberto, teatro, campo de futebol, e muito dinheiro (público) para pagar seus professores. Os 14 Colégios Militares do Exército do país fazem parte do privilegiado sistema que as FFAA possuem para garantir o ensino médio, fundamental e superior, para os filhos dos militares. Aliás, tudo que se refere às Forças Armadas significa um planeta a parte do país, um paraíso. A velha imprensa critica muito os políticos, mas não revela o mundo dos militares e os seus privilégios. A sociedade civil não é informada que os oficiais têm direito à moradia grátis, um sistema de saúde completo com dezenas de hospitais espalhados por todo país, bons salários no fim do mês, sistema de previdência bem melhor que o dos civis, e para a educação não faltam recursos, como se viu.

Democracia x autoritarismo

A formação dos militares, e consequente visão que têm do mundo, anuncia conflitos com a sociedade civil. Formados dentro de uma pedagogia que tem por base a hierarquia e o medo, determinada por uma escala de poder, ou patentes, exigem que aqui fora seja igual. Tem que ser assim porque assim é o certo. O de cima manda, os de baixo obedecem. Um general só conversa de igual para igual com outro general. É um sistema autoritário, tirano, onde a patente determina o pensamento e a ação. Esse poder é absoluto, daí a intimidade dos militares brasileiros com o autoritarismo e as ditaduras. Se vivem dentro desse sistema autoritário e entendem que aí fora, na sociedade civil, na política, existe um inimigo contrário à ideologia (capitalista) que defendem, então precisam intervir, impondo a tirania que conhecem. Isso é o contrário da democracia! Fica a dúvida: os militares aceitariam essa anomalia, essa coisa bizarra que os civis tanto defendem, a democracia?

Ocorre, porém, que a sociedade civil, salvo os fascistas e seus similares, faz campanha aberta em defesa da democracia. Nas escolas se ensina que a democracia, apesar das suas muitas contradições, ainda é o melhor dos sistemas. Capitalistas e comunistas defendem seus princípios numa democracia. Mas um desses princípios apavora os militares: todos são iguais perante a lei. “Como assim? Quer dizer que os direitos do general são os mesmos de um gari? Quer dizer que o brigadeiro não pode mandar o sujeito desocupar o banco de praça quando ele for se sentar com a ordenança?” A democracia é um estorvo para quem aprendeu que no mundo uns mandam e outros obedecem. E as Forças Armadas entendem que elas mandam. Tanto que conseguiram impor à Constituição de 1988 algo que não é nada democrático: quem tem 18 anos é obrigado a se apresentar às Forças Armadas para fazer o serviço militar. Não é uma escolha do indivíduo, mas uma imposição. Uma vitória das FFAA no embate entre democracia x tirania. O alistamento obrigatório foi uma das imposições dos militares ao devolver o país aos civis depois de 20 anos de ditadura. É uma contradição da Carta Magna democrática: aqui os civis se submetem aos militares.

Quando tudo isso vai ter fim? Quando os militares irão deixar de dar ordens aos civis, querendo ensinar sobre política ou patriotismo? Quando deixarão de se meter em temas que não lhes dizem respeito?

Tem que olhar na fonte: eles insistem em fazer intervenções na política porque assim aprenderam nos quarteis. O mundo ideal dos militares é todo mundo fazendo ordem unida e batendo continência para eles. Essa história somente vai mudar quando houver uma revisão do sistema militar brasileiro, deixando claro que os militares devem obediência à sociedade civil (que, por sua vez, deve obediência às leis), e não o contrário. As escolas precisam ser escolas e os quarteis precisam descartar as velhas lições. Patriota não é aquele que canta o hino nacional ou bate continência para o tenente; patriota é quem defende direitos humanos e princípios democráticos; patriota é quem entende o Brasil como um patrimônio de todos e não de uma empresa; patriota é quem defende a democracia e é contragolpes militares; patriota é quem aceita e discute as ideias diferentes. Os militares precisam aprender isso. E com urgência.
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(*) Dioclécio Luz é jornalista e escritor, autor do livro Escola do medo: vigilância, repressão e humilhação nas escolas militarizadas, com lançamento previsto para outubro deste ano.