Cena de “The New Babylon”, que se passa no não menos turbulento período da Comuna de Paris, em 1873.
Cinema soviético na era digital

João Lanari Bo -

Um dos atributos do mundo digital que nos cerca por todos os lados é a (inédita) possibilidade de uma arqueologia, no sentido empregado por Foucault, algo que “remete ao tipo de pesquisa que se dedica a extrair os acontecimentos discursivos como se eles estivessem registrados em um arquivo”.

A arqueologia das imagens ocupa-se em detectar os discursos, em especial os cinematográficos, e sua formação histórica em um determinado campo do saber.

No ano em que a revolução bolchevique completa um século de história – século turbulento e estimulante– um mergulho nessa arqueologia através de ferramentas digitais, o indefectível YouTube, pode ser recompensador.

Por exemplo: o esplêndido longa-metragem “The new Babylon”, produção de 1929 dirigido pela dupla Grigori Kozintsev e Leonid Trauberg, está apenas a um clique do espectador, em versão restaurada e com subtítulos em inglês ou francês – puro deleite.

Os anos finais da década de 1920 configuram uma virada na revolução soviética – Stalin, que havia consolidado sua base no Congresso do Parido Comunista em 1927, expulsa os trotskistas e publica, em outubro de 1928, o premonitório texto sobre os perigos da direita no Partido, que abre dessa forma: “Creio, camaradas, que é necessário antes de mais nada por de lado os pequenos detalhes, as questões pessoais, etc., para resolver o problema que nos interessa: o desvio de direita... no nosso Partido”.

A experimentação artística daria lugar ao tépido realismo socialista. Em 1928 é adotado o primeiro plano quinqüenal, estabelecendo metas e prioridades para toda a economia; começa a coletivização da agricultura; centenas de milhares de agricultores relativamente prósperos são mortos, suas casas destruídas e suas propriedades confiscadas.

Industrialização é a prioridade adotada a ferro e a fogo, custe o que custar.

Kozintev e Trauberg fundaram em 1921 a “Fábrica do Ator Excêntrico” (veja Manifesto), misturando teatro e literatura com as “artes baixas” do circo e narrativas populares.

Pensado como reação ao teatro compenetrado e psicológico de Stanislavski, o coletivo rapidamente migrou para o cinema, levando uma plêiade de atores, fotógrafos e roteiristas.

“The New Babylon” se passa no não menos turbulento período da Comuna de Paris, em 1873. Expressionismo nas imagens e gestos, contraponto sarcástico entre burgueses e “communards”, o filme se apoia no amor impossível de um soldado e uma vendedora do “New Babylon”, feérica loja de departamentos na capital francesa.

A Comuna parisiense – fonte de inspiração de nove entre dez revolucionários, começando por Marx, Lenin e Mao – é o pretexto para uma estupenda experiência de linguagem, de montagem e composição das imagens, de representação e crítica social.

Foi a primeira produção com trilha musical exclusiva, explorando variações orquestrais e motivos fotográficos – e assinada por ninguém menos do que Dmitri Shostakovich, o genial compositor, que tinha 23 anos à época e gostava de tocar piano acompanhando sessões de cinema.

O filme foi admoestado implacavelmente antes do lançamento, que acabou ocorrendo sem a execução musical.

Cerca de 20% da metragem original foi cortada: as citações, da “Marseillaise” ao “music hall”, junto com interpolações assimétricas de som e imagem, revelaram-se intragáveis para olhos e ouvidos do Partido, e banidas.

Mas Shostakovich guardou uma versão anotada, descoberta após a sua morte, em 1975.

A versão do Youtube complementa a restauração da imagem com a música original.

Um dos últimos suspiros da vanguarda artística soviética, o brilhante “The new Babylon” agora ao alcance do dedo.