Foto de um petroglifo milenar da região do alto Rio Negro de autoria de Beto Ricardo/ISA. Algumas pinturas de Rômulo Andrade são inspiradas nessas obras precabralinas
Rômulo Andrade expõe “Memórias dos rios: lugares sagrados”

Exposição do artista plástico Rômulo Andrade será aberta neste sábado (2/7), entre 11h e 18h, na Galeria Karla Osorio - Salas 1, 2 e 3 Pavilhão I (SMDB - Conjunto 31 Lote 1B - Lago Sul – Brasília), com visitação até 8 de agosto.

Ao final desta matéria, Rômulo assina um artigo de sua autoria.

Memórias dos rios: lugares sagrados é uma individual de Rômulo Andrade que ocorre paralelamente a mais outras duas individuais: Hiatus, de Graziela Guardino, com curadoria de Carolina Lauriano (Galerias 4 e 5 Pavilhão II), e Avesso do ocaso, de Álvaro de Santana (Galeria 6 Pavilhão III).

Embaladas com textos de Ailton Krenak e Bené Fonteles, o trabalho de Rômulo Andrade reúne mais de 30 obras, sobretudo pinturas e assemblages criadas nos últimos 20 anos. Todas em técnica mista, explorando aspectos da identidade ancestral brasileira, utilizando formas e processos que dialogam com o imaginário de povos tradicionais na América Latina.

Como diz Bené Fonteles, em texto escrito para a exposição: “São raros os artistas no Brasil que, de frente para um mar, não estejam de costas para o interior do país e a vastidão da América do Sul. Rômulo é um raro destes. Sempre com olhar muito vasto, é um visionário leal à sua utopia e a nossa ancestralidade – antenado com um ‘futuro ancestral’ do qual nos anuncia Ailton Krenak. Também visionando a Eternidade no agora, Rômulo nunca teve medo de não estar fazendo a chamada ‘arte contemporânea’, as vezes tão oportunista e duvidosa. Faz uma poética ‘cosmopolítica’ como Krenak sugeriu se chamar o movimento que os artistas lançaram na recente Bienal de SP e na mostra no MAM/SP pelo nome de Arte Indígena Contemporânea.

Rômulo há décadas vem fazendo do Planalto Central para o Brasil de verdade, uma arte ampla de sentidos e expressões, por amor à

biorregião do Cerrado e as suas águas, matriz de tantos rios brasileiros. Águas cristalinas maculadas, para elas cria um manifesto visual sem nunca separar arte da ecologia e da espiritualidade. Mais do que um esteta apurado e de muito rigor, é um poeta seminal a serviço da consciência e da Luz”.

Ailton Krenak também escreveu sobre a obra do artista:

“Uma geração inteira de pensadores artistas formada na luta política em nosso país, com suas antenas aguçadas atinaram desde cedo, lá pelos anos 70 que Natureza e criação nas artes eram matérias do espírito, e logo iniciaram uma cruzada no meio cultural com sensível abertura de espaços no imaginário e nos tímidos meios de comunicação daqueles tempos.

Artistas pela Natureza nasce com esta marca de caçadores de Beleza nos rios, nas matas, cerrados e chapadões. Entoando canções do Tom Jobim, Águas de março, chuvas, pedra e pau; Gilberto Gil, Egberto Gismonti e Bené Fonteles vieram puxando um cortejo com grandes flautas Assurini, e lançando as redes

Yanomami aos espaços da consciência – Armadilhas indígenas: Cildo Meireles, Athos Bulcão, Rubem Valentim, Lygia Pape, Xico Chaves, Amilcar de Castro, Roberto Mícoli, Marcos Benjamim, Emmanuel Nassar, Siron Franco, Miriam Pires, Marlene Almeida... muitos outros que aqui não caberia seguir a lista luminosa, e Rômulo. Ele é dessa estirpe de gente. Terra. Fogo. Vento. Ar. Rômulo vem com líquens e gravetos nos cabelos. Feito faunos, eles dançam pelas águas, pelas florestas e seus habitantes, gentes e bichos. Ecologia para Rômulo é a própria Arte em movimento, paisagens oníricas e signos gravados em pedra, símbolos ancestrais.

É isso que transpira a série “Memória das Águas”, suas pinturas ameríndias que resultaram de uma longa viagem amazônica. Viagem de argonautas, o mundo de águas e florestas visitadas pelas antenas do poeta, avistando as rupestres marcas que remontam a antigas civilizações. Inscrições feitas em relevo nas rochas, encontradas desde a América central à do Sul, com pedra dura que tanto bate que entalha, grava. Painéis a céu aberto que remetem a ritos cerimoniais, caçadas e pescarias. Armadilhas, como aquelas que ainda podem ser vistas numa releitura, dialogando com artefatos e objetos de uso cotidiano do acervo etnográfico do Memorial dos Povos Indígenas, com as obras do Rômulo, e uma provocante pergunta sobre o tempo destas criações. Com arte indígena contemporânea & Artistas pela Natureza.

Mais de três décadas de expressão da arte/ natureza engajada está ali, com um vocabulário que pode ser entendido mesmo pelas crianças que visitam as mostras deste brasileiro que se tornou defensor do Cerrado, de um sertão que teima em existir entre campos, veredas e buritizais.

Agora, Rômulo entrega essas “Memórias das Águas”, como uma dádiva para este mundo desgovernado de secas e rupturas, onde os humanos seguem como zumbis a insensata corrida para o fim do mundo. Ao mundo que herdamos de nossos ancestrais, com a missão de entregar aos nossos filhos e netos, às futuras gerações. Há momentos em que Rômulo vê sete gerações à nossa frente, e busca as memórias ameríndias em suas mirações. Com materiais e recursos dos mais diversos, aqui são lonas envelhecidas restauradas e reinventadas com arte, remos de madeira e canoas, bastões de cana de buriti entalhados a fogo. A viagem pelos sertões e veredas é sem fim, assim como o sonho de um dia a arte ensinar aos humanos a linguagem das árvores, dos pássaros e das pedras”.

Sobre o artista

Rômulo Andrade (Niterói 1954). Vive e trabalha em Brasília. Teve sua iniciação artística na infância, com seu pai. Radicado em Brasília desde 1975, onde participou do Projeto Cabeças.

Graduado em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade de Brasília (1985), conviveu com grandes artistas como Athos Bulcão, Glênio Bianchetti e Bené Fonteles. Utiliza o desenho, na gravura em metal e serigrafia, e atua também como designer gráfico. Participante ativo do Movimento Artistas pela Natureza, um coletivo que luta em defesa do bioma Cerrado, dos rios brasileiros, dos territórios e dos direitos indígenas.Integrou como artista convidado a Expedição Humboldt – Amazônia 2000. Dessa viagem resultou uma nova série de obras, 3 exposições e edição de 10 vídeos educativos. Participou de inúmeras mostras locais e internacionais. Tem longa pesquisa sobre a poética dos sertões do Brasil, focalizando o Cerrado. Usa materiais impregnados pelo tempo: madeiras nobres, metal, pigmento mineral sobre papel feito à mão, tela e lonas de grande formato. Suas obras remetem aos mitos ameríndios e sítios arqueológicos, que dialogam com a dimensão visionária e se aproximam dos povos aborígenes e selvagens do futuro.

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Serviço:
MEMÓRIA DOS RIOS: LUGARES SAGRADOS, individual de Rômulo Andrade - Galerias 1, 2 e 3 Pavilhão I
A mostra ocorre paralelamente a mais duas exposições inaugurando no mesmo dia.
HIATUS, exposição individual de Graziela Guardino Curadoria Carolina Lauriano - Galerias 4 e 5 Pavilhão II
AVESSO DO OCASO, individual de Álvaro de Santana - Galeria 6 Pavilhão III
Abertura: Sábado, 2 de julho, até 8 de agosto.
Visitação: Segunda a sexta, 9h às 18h30
Sábado 9h às 14h, sempre mediante agendamento prévio pelos telefones: (61) 3367-6303 e (61) 3367-6353 (whatsapp)
Endereço: SMDB Conjunto 31 Lote 1B - Lago Sul Brasília – DF
Facebook: https://www.facebook.com/galeriakarlaosorio
Instagram: https://www.instagram.com/galeriakarlaosorio

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Os Lugares Sagrados

 Por Rômulo Andrade

 O trabalho realizado na Expedição Humboldt - Amaz 2000 se desenvolveu a partir de um diário de bordo, com desenhos, estudos e anotações – eu acordava bem cedo diariamente pra meditar e aproveitar as primeiras horas, as mais frescas do dia equatorial pra estudar e produzir. Essas notas do diário de bordo se desdobraram numa coleção de pinturas sobre lona de grande formato e uma série de objetos poéticos que chamo de Caixas de memória. Organizei tb durante o percurso, algumas oficinas de desenho com jovens em algumas das comunidades visitadas.

Não pudemos entrar em aldeias indígenas por conta da burocracia da Funai mas nos encontramos com alguns personagens notáveis, como o Feliciano Lana, artista e rezador, um sacerdote poliglota da etnia Desana/ Tukano em São Gabriel da Cachoeira.

Numa visita com a Sol à sua casa na Pedra da Candelária onde ele vivia (de lá se avista do alto todo o entorno da cidade), nos conduziu e nos mostrou alguns sinais gravados em pedras que segundo ele foram feitos pelos espíritos guardiões e eram os ‘Lugares sagrados’. Em toda a região do alto rio Negro, existem inscrições misteriosas muito antigas, milenares, em grandes pedras à beira dos rios e cachoeiras, uma linguagem de ícones e grafismos, consideradas pelas muitas etnias que habitam a região esses Lugares sagrados.

Tem sido registrados e estudados por diversos pesquisadores que por lá andaram desde inícios do sec. XX: Koch- Grünberg, etnólogo alemão cuja obra inspirou Mario de Andrade a escrever Macunáima; Reichel-Dolmatoff, antropólogo colombiano com muitas obras publicadas; Kurt Nimuendajú, etnólogo que viveu entre os indios por mais de quarenta anos, entre outros.

Esses lugares míticos, milenares ou sítios arqueológicos se tornaram um foco de grande interesse para mim. Ainda durante a viagem iniciei alguns estudos em desenho. Trabalhando no atelier montado no escritório do ISA com o seu Feliciano, um grande contador de histórias, na ocasião com 63 anos, ouvi muitos relatos das suas vivências desde jovem e dos mitos de origem de seu povo.

Essa dimensão mágica da floresta é o que reverberou mais profundamente em mim e me trouxe o propósito do trabalho a ser realizado.