Fotograma do episódio “Ary Vaí: vestir a cura; o canto para a proteção”.
Formas de adiar o fim do mundo na era do Antropoceno

Iago Porfírio (*) –

Diante de um cenário de catástrofes políticas, climáticas, sanitárias e de retrocessos, a Câmara dos Deputados aprova o Projeto de Lei 490/2007. Um ataque aos povos originários e uma violência contra demarcação de suas terras.

Coletivos indígenas de cinema têm recorrido ao uso político dos recursos do audiovisual como uma maneira de possibilitar mundos possíveis e impedir que o céu despenque sobre nós, para usar uma expressão de Ailton Krenak.

O termo Antropoceno refere-se aqui à brutalidade do mundo, entendido como sendo uma desestabilização ecológica permeada por reacionarismos e negacionismos.

Paul J. Crutzen e Eugene F. Stoermer denominam a época geológica e ecológica atual como sendo a era do Antropoceno, que surge pelos “extensos e ainda crescentes impactos das atividades humanas na terra, na atmosfera e em todas as escalas, inclusive a global”.

Para Marisol De La Cadena , “o Antropoceno faz referência à era em que os humanos se tornaram uma força geológica capaz de destruição planetária”, um momento de implosão e destruição de mundos.

Enquanto seguem os duros ataques à Amazônia e aos povos indígenas pelo atual governo – o que passa a boiada –, experiências coletivas fazem uso político de ferramentas tecnológicas no campo da comunicação. Dessa forma, buscam dar visibilidade às realidades sociais e políticas de povos que vêm enfrentando os frequentes despejos violentos de seus territórios tradicionais e assassinatos de lideranças.

Como exemplo de forma de adiar o fim do mundo, cito a websérie de curtas Nativas Narrativas: mirando mundos possíveis, produzida pela Associação de Realizadores Indígenas do Mato Grosso do Sul (Ascuri).

Dividido em três episódios, o conjunto da série narra como os povos Guarani, Kaiowá e Terena têm agenciado as relações cosmológicas com a Terra no contexto da pandemia do novo coronavírus e das mudanças ecossistêmicas.

A despeito de mostrar claramente a pandemia como consequência de uma crise ecológica ou uma guerra ontológica entre os mundos, os curtas trazem em primeiro plano a retomada dos vínculos possíveis com a terra e com uma perspectiva política do cultivo. Não se trata, nesse caso, de um debate quanto ao lugar de fala, mas sim de uma passagem à fala dos lugares, ou seja, a natureza assume o seu lugar como agente que alarga a subjetividade de mundos.

Assim, nos três episódios que compõem a série, a centralidade das narrativas está na cosmologia Guarani e Kaiowá e no saber em que só é possível de ocorrer onde há os elementos que o constitui, como o rio e a mata.

O primeiro episódio é o Teko Marangatu, que traz como questão o habitar e ser a terra em um contexto de perturbação humana e de uma crise de habitabilidade em tempos de negacionismos e de uma política genocida. No segundo, Ary Vaí, a ação cosmológica está para evitar que chegue na aldeia a doença “que os brancos chamam de coronavírus”, e o terceiro, Yvyra’i Jegua, movimenta o tema do cultivo do território e do milho que, além de ser usado nos rituais de reza, se insere num processo de domesticação co-evolutivo, sofrendo modificações fenotípicas em sua aparência, por exemplo.

Proponho aqui uma discussão a respeito dos elementos cosmológicos que atravessam os respectivos filmes e que, sobretudo, têm sido prática articuladora da produção cinematográfica documental indígena, em seus aspectos estéticos e, a partir de Ailton Krenak, lançar a seguinte questão: pode o cinema indígena, entendido como aquele feito pelos próprios indígenas, operar como forma de adiar o fim do mundo na era do Antropoceno? Embora essa questão exerça uma influência na proposta deste texto, sua reflexão não se esgota aqui.
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(*) Iago Porfírio é jornalista e doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA/PósCom).

Veja aqui o site da websérie "Nativas Narrativas: mirando mundos possíveis - Guarani, Kaiowá e Terena".

Leia aqui os conceitos que envolvem o termo Antropoceno no site da Unesco.