A interseccionalidade é uma ferramenta teórica e não se restringe a ideologias partidárias, portanto seria errôneo associá-la à “esquerda” ou à “direita”
Um oceano em eterna construção

Aimê Rivero (*) –

A renomada socióloga e professora universitária Patricia Hill Collins, em coautoria com Sirma Bilge (**), presenteia seus leitores com um novo livro: Interseccionalidade, um oceano em eterna construção.  Logo no prefácio avisa que a obra é um “roteiro de descoberta, não o retrato de um produto acabado”; mergulha termo adentro e, simultaneamente, mundo afora.

Através da ótica da interseccionalidade, Collins analisa estudos de caso como a Copa do Mundo da FIFA de 2014 no Brasil e o movimento das mulheres negras brasileiras, dois exemplos superficialmente distintos que se assemelham por possuírem marcos interseccionais que são imprescindíveis para a compressão total de ambos os casos.

É difícil conceituar de forma concreta o que vem a ser a interseccionalidade, contudo, Collins afirma que mesmo entre as inúmeras variações de significados, quem se utiliza do termo poderia concordar com a seguinte definição genérica: A interseccionalidade investiga como as relações interseccionais de poder influenciam as relações sociais em sociedades marcadas pela diversidade, bem como as experiências individuais na vida cotidiana. Como ferramenta analítica, a interseccionalidade considera que as categorias de raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária - entre outras – são interrelacionadas e moldam-se mutuamente. A interseccionalidade é uma forma de entender e explicar a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências humanas.

Collins defende o uso da interseccionalidade como ferramenta analítica, ou seja, aplicar seu uso em todo o procedimento de análise das relações de poder, de forma atenta para não simplificar e/ou generalizar questões amplas e complexas como desigualdade social e econômica, raça, idade, gênero, capacidade, etnia, religião, nacionalidade. A autora, inclusive, parece fazer questão de descrever, sempre que possível, a longa lista de categorias passíveis de identificação social, e consequentemente de opressão, diferindo da maioria dos discursos que tange pelo menos um dos campos mencionados. Isso se evidencia porque popularmente, dentro e fora do ambiente acadêmico, parece pairar uma nuvem de “etc”, de forma a remover a importância das nomenclaturas, bem como a associação com os processos sociais que estas acarretam (como heterossexismo, racismo, capacitismo). Collins, inclusive, questiona a substituição linguística que ocorreu com o termo “diversidade”, cuja fácil incorporação pelas instituições é questionável, uma vez que pode ser sinal de despolitização do termo.

A autora compreende que há seis ideias centrais que constituem a interseccionalidade – a saber: desigualdade social, relações de poder interseccionais, contexto social, relacionalidade, justiça social, complexidade. Ao explorar essas ideias centrais, elucida compressões que rompem com as normas estabelecidas pela ideologia neoliberal, que enxerga a desigualdade social como “algo natural, normal e inevitável”, ao invés de distinguir suas múltiplas facetas interseccionais; “a desigualdade social não se aplica igualmente a mulheres, crianças, pessoas de cor, pessoas com capacidades diferentes, pessoas trans, populações sem documento e grupos indígenas”.

Collins afirma também que o “uso da interseccionalidade como ferramenta analítica é uma maneira poderosa de analisar como as relações de poder interseccionais produzem desigualdades sociais”. As relações de poder interseccionais por sua vez se ramificam em quatro domínios de poder: estrutural (que se refere às estruturas das instituições sociais), disciplinar (julgamentos baseados no status quo), cultural (que dissemina o mito do fairplay ou meritocracia) e interpessoal (que é o modo como os indivíduos vivenciam a convergência dos outros três poderes).

Questões como as desigualdades sociais e econômicas são comumente explicadas de forma simplista, e a interseccionalidade propõe uma análise mais sofisticada, que abrange para além da classe. Isso porque os vários fatores envolvidos, e suas diversas relações, marcados pela localidade e contexto histórico, demonstram a complexidade do emaranhado que produz as desigualdades.

Collins também aponta para o surgimento e crescimento do populismo de extrema direita com base nas medidas neoliberais por parte dos Estados-nação sociais-democratas. O Brasil é um exemplo de como a constante privatização de serviços, a redução do Estado de bem-estar social e a rejeição da noção de bem público podem agravar as desigualdades sociais e culminar em um expressivo populismo de extrema direita. Collins analisa a influência da Copa de 2014 sobre a população, que se sentiu abandonada, e no seu consequente irônico resultado: as eleições de 2018.

O livro analisa o surgimento do movimento das mulheres negras brasileiras, e como as particularidades de sua opressão tornaram necessária a existência de um movimento próprio, que nem o movimento negro, a luta de classe ou o feminismo abarcavam por completo. É necessário entender as bagagens do Brasil enquanto corpo histórico marcado por genocídio, estupro, colonialismo, ditadura, e como esses fatores influenciam dialeticamente a individualidade coletivamente de forma interseccional.

"Nem o feminismo brasileiro, liderado por mulheres que eram sobretudo ricas e brancas, nem o movimento negro, que estava ativamente engajado em reivindicar uma identidade negra coletiva que identificava o racismo como uma força social, poderiam por si sós abordar de maneira adequada as questões das afro-brasileiras. Mulheres negras que participavam do movimento negro tinham aliados combativos quando se tratava de ativismo negro antirracista, mas encontravam muito menos compreensão a respeito do fato de que os problemas enfrentados pela população negra possuíam formas específicas de gênero", destacam as autoras.

Adiciona-se ao processo o mito da democracia racial e o colorismo, cuja premissa favorece pessoas com traços mais embranquecidos. As mulheres negras brasileiras criaram uma política identitária para abraçar suas necessidades, de natureza interseccional, e que não eram contempladas por outros movimentos.

Para o escopo acadêmico, Collins identifica duas características fundamentais que estabelecem a base para a interseccionalidade enquanto ferramenta analítica: 1) uma abordagem para entender as experiências e lutas das pessoas privadas de direitos; e 2) uma ponte entre teoria e prática para empoderar comunidades e indivíduos.

A interseccionalidade é um constructo enquanto ferramenta e não se restringe a ideologias partidárias, portanto seria errôneo associá-la à “esquerda” ou “direita”. A práxis é ampla, complexa e delicada, contudo, é uma possibilidade para a grande quantidade de grupos privados de direitos, de forma interseccional, de compreender o próprio lugar, enquanto coletivo e indivíduo, entender suas próprias demandas e romper com o véu que cobre os mecanismos de poder geradores de desigualdades.

Ao longo de oito profundos capítulos Collins interconecta o globo e por fim, questiona o rumo da interseccionalidade sem trazer respostas prontas. É um verdadeiro começo da mudança que precisamos.
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(**) Sobre as autoras



Patricia Hill Collins (na foto, acima)
é professora emérita do departamento de sociologia da Universidade de Maryland. Foi a primeira mulher negra a presidir a Associação Americana de Sociologia. É considerada, ao lado de Angela Davis e bell hooks, uma das mais influentes pesquisadoras do feminismo negro nos Estados Unidos. Pela Boitempo, publicou também Pensamento feminista negro (2019).

Sirma Bilge (na foto, acima) é professora catedrática no Departamento de Sociologia da Universidade de Montréal, onde leciona cursos de graduação e pós-graduação sobre gênero e sexualidade, racismo, nacionalismo e relações étnicas, abordagens pós-coloniais e descoloniais.
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Ficha técnica:
Título
: Interseccionalidade
Autoras: Patricia Hill Collins e Sirma Bilge
Tradução: Rane Souza
Capa 1: Flávia Bomfim (concepção e bordado © 2021)
Capa 2: Antonio Kehl (sobre pintura de Sirma Bilge © 2015)
Editora: Boitempo
Páginas: 288
Preço: R$ 67
Preço e-book: R$ 51
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(*) Aimê Rivero é estudante de Comunicação na UnB, dançarina, pesquisadora e educadora.