Álvaro Henrique levaria para uma ilha as obras de Villa-Lobos, Mauro Giuliani e Bach
O violão de Álvaro Henrique

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

Guia Musical de Brasília n° 10 - Quando entrevistamos o premiado violonista Álvaro Henrique, professor da Escola de Música de Brasília, ele estava preparando as malas para viajar aos Estados Unidos. Ali, no início de julho, ele lançaria a primeira gravação mundial das composições para violão solo de César Guerra-Peixe, daria uma palestra sobre esse compositor brasileiro, e ainda competiria com grandes instrumentistas de todo o mundo durante o maior evento de violão das Américas, a Convenção da Guitar Foundation of America (GFA), sediada na Universidade de Indianápolis.

Não é a primeira vez que Álvaro Henrique brilha no Exterior. Há dois anos foi premiado na Quebec Music Competition, no Canadá, trabalhou como solista de orquestra com a Vaasa Sinfonietta, na Finlândia, e já se apresentou em outros 13 países. Bacharel em violão pela Universidade de São Paulo (USP), é diplomado em Educação Artística pela Universidade de Música de Nuremberg, Alemanha, e é mestre em música pela Universidade de Brasília.

Ele é presidente-fundador da Associação Brasiliense de Violão (BRAVIO), a primeira entidade da América do Sul parceira da Guitar Foundation of America (GFA).

Curiosamente, foi a sua extrema timidez que o levou ao violão. Seus pais, um maranhense e uma pernambucana que veio menina para Brasília, ainda na época da construção, não sabiam o que fazer com o moleque com dificuldades para se comunicar, numa época, anos 80, em que buscar o apoio de um psicólogo ainda era tabu. Seu pai então teve a ideia de levá-lo para a escola de violão.

As primeiras experiências com o instrumento foram frustrantes, diz Álvaro, porque se resumiam a ficar embaixo do bloco “batendo acordes e cantando a Legião Urbana”. Até que um amigo o levou à casa de um primo para ouvir Som de Carrilhões, de João Pernambuco, e Romance de Amor, atribuído ao espanhol Antonio Rubira. Álvaro descobriu o violão clássico e aceitou a proposta de seu pai, que o matriculou na escola Espaço Sonoro, no Guará 2, onde morava a família. O seu primeiro professor, Zilmar Gustavo Costa, é hoje seu colega na Escola de Música.

Rock ou Lua – Álvaro Henrique diz que na época havia três tipos de adolescente em relação à música: “Os que ouviam o que a Globo mandava ouvir, os que ouviam rock, e os que moravam na Lua”. Ele mesmo ouvia rock, e tinha a ideia de tocar violão durante um tempo e depois migrar para a guitarra. “Só que o violão clássico foi me encantando cada vez mais”. Por quê? “Eu acho que a música clássica tem, acima de tudo, a linguagem da emoção. E eu fui descobrindo que eu tenho uma gama maior de emoções para explorar no universo da música clássica. Isso me fez nesse universo até hoje”. 

O próximo passo foi a mudança para São Paulo, para cursar bacharelado de música na USP. Ali enfrentou o ambiente hostil de uma cultura que usa o bullying como ferramenta pedagógica, como retratado no filme Whiplash: Em Busca da Perfeição, de Damien Chazelle. Enfrentou o desafio com paciência, em sala de aula e fora, frequentando festivais, master classes e concertos.

Num dos seminários conheceu Alvise Migotto, músico canadense de origem italiana, uma de suas grandes influências, junto com Edelton Gloeden, violonista paulista.

Álvaro Henrique conta que a partir daí aprendeu muitas lições com músicos que nem foram seus professores. Foi o caso do maestro David Junker, que comandava o Coro Sinfônico da UnB. “Vivenciar como ele organiza e conduz o ensaio, como determina o horário para cada coisa… Isso é melhor do que uma aula…” Bohumil Med foi outra figura marcante. “Eu o vejo mais como um mentor, paternal, amigável, mas que também fala o que a gente não quer ouvir, mas precisa (risos)”. E mais: “Leo Brouwer (violonista cubano), mudou a minha visão de música”; e Paul Galbraith (escocês) “me mostrou o quanto que é bom ser genuíno, mesmo que você tenha um bando de gente chata fiscalizando porque que você não está fazendo as coisinhas do jeito que todo mundo faz”.

Entre 2006 e 2008, Álvaro trabalhou com o grande violonista e regente Fábio Zanon, que o apresentou a Franz Halász, um guitarrista alemão casado com uma brasileira de quem tomou emprestado o sobrenome húngaro. Foi Halász quem o convenceu a estudar na Universidade de Música de Nuremberg. “Eu aprendi violão com muita gente, mas estava faltando unir esse conhecimento  com o panorama mais amplo da música. Foi o Halász que me ajudou a fazer a síntese”.

As aulas gravadas – De volta ao Brasil, Álvaro Henrique passou num concurso para lecionar na Escola de Música de Brasília. Sua efetivação como professor demorou nove anos, no entanto, e só depois de uma decisão judicial. Com ampla preocupação social, resolveu gravar e disponibilizar para o público, gratuitamente, as aulas dos seis anos do curso técnico, tarefa que está quase no fim. As pessoas interessadas podem acessar essas aulas no site alvaro.henrique.com/cursosabertos 

Queremos saber agora os compositores que mais fizeram a cabeça do entrevistado. “Olha, se eu tivesse que ir para uma ilha deserta levando o violão e um conjunto de partituras, certamente seriam as do Villa-Lobos, do Mauro Giuliani e do Bach”.

Para o editor ignorante do Guia Musical, Álvaro informa que Mauro Giuliani foi um contemporâneo de Beethoven, que, aliás, conheceu o compositor e teria tocado violoncelo na estreia de sua Sétima Sinfonia, na Universidade de Viena, no dia 8 de dezembro de 1813. Muito provavelmente, Giuliani aprendeu a tocar violão com a sua mãe, como ocorria com os músicos homens de sua geração, quando a maioria dos violonistas era formada de mulheres. Os homens costumavam aprender a tocar um instrumento na escola, mas aprendiam violão com a mãe. Só depois da geração de Giuliani é que o mercado se abriu também para os homens solistas e concertistas.

Naquela época, ensina Álvaro Henrique, os músicos queriam ser Beethoven ou Rossini (o compositor de óperas italiano Gioachino Rossini). Giuliani quis ser Rossini, tanto é que o último conjunto de suas seis obras, compostas entre 1822 e 1828, tem o nome de Rossinianas, trazendo para o universo do violão o espírito do canto lírico.

E quando foi que Álvaro Henrique se interessou por César Guerra-Peixe? Quando participou de um concurso em Belo Horizonte, em 2003 ou 2004, que previa como música obrigatória a Sonata do compositor carioca. Ele não teve sucesso no concurso, mas viu que aquela música era rica, importante e bonita, espicaçando a sua curiosidade pelas outras composições.

Guerra-Peixe foi um discípulo de Hans-Joachim Koellreutter, um músico representante do expressionismo alemão que se exilou no Brasil em 1937 fugindo do nazismo. Tornou-se amigo de Mário de Andrade e Heitor Villa-Lobos. Em 1939 ele fundou o movimento Música Viva, e foi professor de composição de Guerra-Peixe, Cláudio Santoro, Eunice Katunda e Edino Krieger.

Um aspecto da riqueza e da complexidade de Guerra-Peixe, segundo Álvaro Henrique, é que ele saltou do serialismo para a música armorial no início dos anos 70, quando Ariano Suassuna fundou o Movimento Armorial estando no posto de diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Suassuna tinha claro o que o movimento faria no teatro e nas artes plásticas, mas foi Guerra-Peixe quem deu os primeiros rumos à música segundo essa estética nacionalista com base em elementos nordestinos. 

Pensando a obra de Guerra-Peixe como um tesouro ainda escondido dos brasileiros, Álvaro Henrique resolveu resgatar e gravar em CD, em primeira mão, as suas composições para violão solo, com seu lançamento previsto para a Convenção da Guitar Foundation of America (GFA). Disponíveis nas plataformas digitais, estão ali a Sonata para Violão, os 5 Prelúdios, o Caderno de Mariza, as Breves, as Lúdicas e os Peixinhos da Guiné.