A monstruosa sociedade do Brasil, escravocrata até o talo, é uma fábrica permanente de monstros
No país dos Reguffes, Lázaros e Micuçus

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) -

O senador José Reguffe (Podemos-DF) acaba de apresentar um projeto de lei que proíbe a saída temporária (saidão) de presos condenados por crimes hediondos, como homicídios, estupros e roubos com armas de fogo ou emprego de violência.

Ó, céus de resplendor e perfulgência, que descortino, lucidez, sagácia e inteligência! Segurança pública do Brasil, agora vai!

O senador Reguffe é uma daquelas figuras lastimáveis da política nacional. Moralista até o ponto do ridículo, elegeu-se pregando a economia das verbas de gabinete, a sua obsessão. No ano passado propôs uma resolução-perfumaria para que metade das verbas indenizatória e de gabinete dos senadores pudessem ser usadas no combate à epidemia do coronavírus.

Agora, com o projeto para limitar o saidão, ele quer surfar na onda da caçada ao Lázaro Barbosa, o monstro de Cocalzinho e professor de balé das polícias de Goiás e do Distrito Federal. Explica-se: o senador cogita candidatar-se ao governo do Distrito Federal no ano que vem, sabendo que sobram eleitores brancos simpáticos a esse tipo de medida populista/demagógica, que serve apenas para lançar fumaça sobre o sistema prisional do Brasil, cisco debaixo da alcatifa.

Por que o senador não usa melhor as verbas que a gente paga a ele para atacar problemas realmente relevantes?

Há no País 682 mil pessoas presas, 241 mil das quais acima da capacidade de hospedagem das penitenciárias. Não seria mais adequado propor um mutirão da Justiça para liberar os presos que já deveriam estar em liberdade? Ou acelerar as progressões das penas? Ou converter milhares de condenações por crimes de bagatela em penas alternativas?

Por que o nobre senador não toma providências para efetivar a  Recomendação n° 62, de 17 de março de 2020, do Conselho Nacional de Justiça, que lista medidas de prevenção à propagação da Covid-19 nas sucursais aglomeradas do Inferno que são as cadeias do Brasil?

Por que o nobilíssimo Catão não apresenta uma medida para fazer cumprir a proibição constitucional da prática de tortura nas delegacias de polícia? No último Domingo Espetacular da TV Record, a esposa de Lázaro Barbosa contou ao repórter Roberto Cabrini que foi torturada pela polícia para dizer o paradeiro do marido. “O policial deu três, quatro tapas no meu rosto. Ele quebrou o rodo da minha tia e ia me bater com o cabo. Eu pensei comigo: 'Senhor, eu não acho justo eu apanhar com esse cabo de vassoura. O Senhor sabe que eu não sei onde ele está.'"

Por que o senador Reguffe não entra com um mandato de injunção ou coisa que o valha para garantir a proteção dos terreiros de umbanda e candomblé contra a fúria da polícia, como se testemunhou na caçada ao Lázaro em Águas Lindas de Goiás?

Não é pessoal! – A crítica aqui não é pessoal. Eu conheço as limitações do senador e sei que ele, filho de um contra-almirante da Marinha do Brasil, é apenas uma engrenagem do sistema construído lá no século 19 pela plutocracia escravocrata.  

Ontem eu estava lendo um artigo do professor Fernando Ferreira, da USP, sobre os 150 anos da Comuna de Paris e da Lei do Ventre Livre, em que são descritas as reações de alguns senadores ao projeto de lei do Visconde do Rio Branco.

Incrível, os Reguffes da época diziam que a Lei do Ventre Livre, “apesar do claro intuito do visconde de Rio Branco de aprovar um projeto tímido de abolição (…) para evitar uma maior radicalização do movimento abolicionista”, era um atentado contra a propriedade privada.

Um porta-voz dos latifundiários disse que o projeto de lei tornava “o governo e seus amigos piores que os comunistas franceses”, isto é, os líderes da Comuna de Paris, que acabavam de ser massacrados pelo governo fantoche de Adolphe Thiers no final de maio de 1871. Aqui vai o link do artigo do professor Fernando Ferreira.

Anotem aí: dentro de mais algum tempo as polícias de Goiás e do Distrito Federal deverão localizar e massacrar o Lázaro Barbosa, como de praxe. O Bolsonaro e os governadores Ibaneis e Caiado soltarão foguetes, comemorando a eliminação de mais um terrível inimigo da sociedade e da civilização nacionais. O Congresso entrará na festa aprovando o lampejante projeto do senador Reguffe, e nós, cidadãos de bem e cristãos brancos, voltaremos a dormir em paz!

SQN, só que não!

Ontem eu reli a balada The Burglar of Babylon (O Ladrão de Babilônia) da poeta Elizabeth Bishop, sobre o terrível Micuçu, “inimigo da sociedade”, um Lázaro Barbosa que viveu e foi morto pela polícia e o Exército no Rio de Janeiro no início dos anos 60. Teve até helicóptero, que nem agora no Entorno do Distrito Federal.

Aqui vai o início da balada, na tradução de Paulo Henriques Britto, contando uma história quase igual à do Lázaro. Dá até agonia:

Nos morros verdes do Rio
Há uma mancha a se espalhar:
São os pobres que vêm pro Rio
E não têm como voltar.

São milhares, são milhões,
São aves de arribação,
Que constroem ninhos frágeis
De madeira e papelão.

Parecem tão leves que um sopro
Os faria desabar
Porém grudam feito líquens
Sempre a se multiplicar,

Pois cada vez vem mais gente.
Tem o morro da Macumba,
Tem o morro da Galinha,
E o morro da Catacumba;

Tem o morro do Querosene,
O Esqueleto, o do Noronha,
Tem o morro do Pasmado
E o morro da Babilônia.

Micuçu era ladrão,
Assassino, salafrário.
Tinha fugido três vezes
Da pior penitenciária.

Dizem que nunca estuprava,
Mas matou uns quatro ou mais.
Da última vez que escapou
Feriu dois policiais.

Disseram: “Ele vai atrás da tia,
Que criou o sem-vergonha.
Ela tem uma birosca
No morro da Babilônia”
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