Parece que Michelangelo pintou Javé com o traseiro de fora para mostrar a sua insatisfação com o papa Júlio II
“Futuramente aqui: Bunda!” - Considerações sobre o projeto do Museu Nacional da Bíblia

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

Vou meter a minha colher no caldeirão do debate sobre o plano do governador Ibaneis Rocha de ereção do chamado Museu Nacional da Bíblia em Brasília, a cargo do secretário de Cultura Bartolomeu Rodrigues.

Juro que pensei duas ou três vezes sobre o tom a empregar neste artigo. Deveria ser sóbrio como o profeta Jeremias ou o filósofo Bento de Spinoza? Irônico como Jó? Blasfemo como Diderot? No fim, a maior inspiração me veio do pintor Michelangelo Buonarroti, um profundo conhecedor da Bíblia dos judeus e um tremendo gozador… divino, evidentemente!

Eu poderia iniciar o artigo com uma cena imaginária. Tipo assim: logo depois de eleito, o governador Ibaneis Rocha Barros Jr. tem uma noite agitada. Sonha que ainda é menino em Corrente, no Piauí, caçando passarinhos de baladeira. Lembra-se então da aula de religião no Colégio das Irmãs Mercedárias, durante a qual aprendeu a história de São Pedro. Uma das fontes é o Capítulo 16 do Evangelho de Mateus. Ibaneis ri do trocadilho infame de Jesus: “18 - Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela; 19 - E eu te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus”.

Ibaneis acorda suando, preocupado, mas com um senso de revelação. Esse sonho tem sido recorrente nos últimos 30 e tantos anos, e foi justamente por causa dele que nomeou um de seus filhos João Pedro, e um segundo, Mateus. Dessa vez, Ibaneis acha que acabou de receber um sinal, como se o pardalzinho azul do Whatsapp do Céu quisesse lhe dizer alguma coisa, como se, que nos perdoem o sincretismo, baixasse nele o espírito de Simão Pedro Barjonas.

“Ibaneis, sujeito, tu és rocha! E sobre essa rocha, sobre essa rocha… Caralho, o que é que eu vou construir sobre essa rocha? Óbvio, seu moço, o Museu da Bíblia que eu prometi aos pastores. E, claro, a minha reeleição! Aleluia”!

Ibaneis salta da cama e põe mãos a essa obra que, supõe, só pode ser do Senhor. Dali a 11 meses e dezoito dias, ainda ruminando a cena da caça com baladeira, ele atiraria a pedra fundamental do Museu, no meio do Eixo Monumental, nas imediações da Rodoferroviária. Durante o culto-solenidade, estava cercado de pastores exaltados empunhando a Bíblia, entre eles Ronaldo Fonseca, pastor da Assembleia de Deus e ex-secretário-geral da Presidência no governo Michel Temer.

Uma primeira observação: não tenho a menor sombra de dúvida – sombra medida pelos graus atrasados do relógio de sol de Acaz – que esse Museu Nacional projetado pelo governador Ibaneis, com a pretensão de ser a maior de sua gestão, se chegar a ser construído, será um monumento ao fanatismo e ao fundamentalismo religioso, asilo da ignorância e da superstição. Pior, o governador pretende que a obra seja financiada com dinheiro público, captado por meio de emendas parlamentares. Dinheiro de impostos, arrecadado do conjunto da população muito diversificada em termos de crenças, para ser destinado a um rebanho específico de crentes, os evangélicos neopentecostais. Mais: a obra não tem valor firme. Já disseram que custaria 80 milhões de reais, depois baixaram para 63 milhões, e agora oscilaram o orçamento para 26 milhões. A julgar pela experiência recente do Estádio Nacional, por exemplo, é provável que logo, logo esses 26 milhões serão multiplicados por cinco ou por dez, como aconteceu nos milagres da multiplicação dos pães no deserto e dos peixes à beira do Mar da Galileia. 

Ao contrário do que diz o secretário Bartolomeu Rodrigues, o museu não seria, absolutamente, “um espaço cultural e curatorial, que vai permitir experiências de conhecimento sobre uma das mais importantes escrituras da humanidade, sobre a qual deitam as raízes da civilização ocidental”. Seria, isso sim, um bastião do proselitismo neopentecostal.

Antes, porém, de demonstrar com a clareza da sarça ardente essa grave afirmação, vou recapitular o histórico do projeto.

1) A ideia original do Memorial da Bíblia foi apresentada à Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) no dia 10 de dezembro de 1991 pelo deputado evangélico Peniel Pacheco na forma de um projeto de lei que recebeu o número 286/91. Na justificativa, Pacheco disse que Brasília precisava de um monumento para enaltecer “o livro dos livros – a eterna Bíblia”, fonte do “verdadeiro significado da existência humana e dos desígnios divinos." O deputado disse ainda que o memorial seria um ponto de encontro com a "mensagem de Deus aberta a todos os povos" e que o monumento da Bíblia seria o maior patrimônio espiritual da humanidade. (Essas informações foram retiradas da monografia “A Influência religiosa na atuação de distritais evangélicos na Câmara Legislativa do Distrito Federal”, julho de 2009, de autoria de Lygia Maria Bitencourt Moura Oliveira, bacharelanda de Ciências Sociais na UnB.)

2) A redação final do projeto de Peniel Pacheco foi aprovada pela Câmara Legislativa no dia 26 de junho de 1995 e publicada no Diário da CLDF no dia 19 de julho de 1995. Rezava o seguinte:

Art. 1° - Fica destinado para construção do Memorial da Bíblia o terreno em forma retangular, com área de 15.000 m², situado no Eixo Monumental, próximo ao entroncamento deste com a Estrada Parque Indústria e Abastecimento - EPIA.

Parágrafo Único - O terreno referido no caput deste artigo mede 100,00m de frente por 150,00m de comprimento, estando limitado pelas vias S-1 e N-1 Oeste que formam o Eixo Monumental de Brasília.

Art. 2° - Na área destinada por esta Lei será construído o Memorial da Bíblia, conforme projeto do arquiteto Oscar Niemeyer constante dos anexos 1, 2, 3, 4, 5 e 6, vedando-se a sua destinação para outros fins.

Art. 3° - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 4° - Revogam-se as disposições em contrário.

Sala das Sessões, 26 de junho de 1995 (Redação Final aprovada na Sessão Ordinária do dia 26.06.95.)

3) O Projeto de Lei nº 286/91 tornou-se a Lei nº 900, de 11 de agosto de 1995, pela sanção do governador Cristovam Buarque, com o veto do artigo 2º, que previa a utilização do suposto projeto do arquiteto Oscar Niemeyer na sua construção. Esse veto nunca foi derrubado pela CLDF. A Lei nº 900 está assim redigida:

Lei nº 900, DE 11 de agosto de 1995

Destina terreno para a construção do Memorial da Bíblia e dá outras providências.

O Governador do Distrito Federal,

Faço saber que a Câmara Legislativa do Distrito Federal decreta e eu sanciono a seguinte lei:

Art. 1º - Fica destinado para construção do Memorial da Bíblia o terreno em forma retangular, com área de 15.000m², situado no Eixo Monumental, próximo ao entroncamento deste com a Estrada Parque Indústria e Abastecimento - EPIA.

Art. 2º – Vetado

Art. 3º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 4º - Revogam-se as disposições em contrário.

Brasília, 11 de agosto de 1995

107° da República e 36° de Brasília

Cristovam Buarque

4) As observações constantes nos parágrafos primeiro (renumeração) e no segundo (acréscimo) referem-se à alteração proposta pelo deputado evangélico Leonardo Prudente, pai, no dia 11 de agosto de 1995, no mesmo dia da sanção de Cristovam, outorgando ao Conselho Nacional de Pastores do Brasil a responsabilidade de edificação, administração e manutenção do Memorial. Essa mudança foi sancionada pelo governador Joaquim Roriz no dia 22 de abril de 2002. Prudente justificou a proposta nos seguintes termos: “Justifica-se a presente alteração para desonerar o Poder Executivo de tal missão, mesmo porque do ponto de vista orçamentária (sic) não há qualquer previsão para a sua efetivação o que tornaria mais uma lei sem aplicabilidade (sic).”

5) No dia 3 de junho de 2019, o governador Ibaneis Rocha recebeu o secretário de Assuntos Religiosos, Kildare Araújo Meira, para tratar da Lei nº 900. Participou do encontro o reverendo Erní Walter Seibert, diretor-executivo da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB). Seibert informou que seria feito um acordo da SBB com o Conselho Nacional de Pastores do Brasil para a viabilização do museu. A SBB tem know-how. A entidade inaugurou seu primeiro Museu da Bíblia em Barueri, São Paulo, e diz já ter distribuído, até 2016, 150 milhões de exemplares de Bíblias e Novos Testamentos no País.

Segunda observação – Vou repetir tintim por tintim o que disse o secretário Bartolomeu Rodrigues para justificar o projeto na entrevista que concedeu à Agência Brasília divulgada na página da Secretara de Cultura no dia 14 de janeiro de 2021. Diz ele:

1) “O Museu da Bíblia será um espaço cultural e curatorial, que vai permitir experiências de conhecimento sobre uma das mais importantes escrituras da humanidade, sobre a qual deitam as raízes da civilização ocidental”.

2) “A Bíblia influenciou fortemente as artes, a literatura, a filosofia e o pensamento científico. Até o mais ardoroso ateu sabe disso. E, não por menos, museus similares existem em várias partes do mundo, a exemplo do Museu da Bíblia de Washington [EUA].”

3) (“O espaço será aberto a todos, independentemente de orientação religiosa”). (…) “Por ser um equipamento que evoca tema religioso, surgem questionamentos baseados em interpretações apressadas, muitas preconceituosas, que precisam ser desmistificadas” (...) “Antes de tudo, o projeto nasce dentro dos padrões museológicos mais rigorosos. Não se está pretendendo erguer um templo de fé e de orações”.

4) “Será um equipamento que vai ampliar a diversidade cultural do Distrito Federal, que em nada fere o Estado laico, mas contribuirá sensivelmente, com uma proposta curatorial balizada pela arte e pela formação do conhecimento, para reunir, em seu espaço apreciativo, pessoas de diversas religiões e credos ou até agnósticas e ateias”. (…) “Por que não? A Bíblia continua sendo fonte de inúmeros estudos, tenha ou não propósitos religiosos.”

Ingenuidade - Em princípio, não descarto a boa fé do secretário de Cultura. Mas, cá para nós, é preciso ser muito ingênuo para acreditar que o Conselho Nacional de Pastores e a Sociedade Bíblica Brasileira respeitarão as intenções por ele agora esboçadas. As duas entidades são, afinal, compostas por “pregadores da Palavra”, prosélitos, notórios mercadores evangélicos da fé popular.

Para constatar isso, basta ver as peças publicitárias do Museu da Bíblia de Barueri, modelo para o museu brasiliense. Um vídeo de 15 de janeiro de 2008, que pode ser visto no YouTube, informa que o museu de Barueri tem raridades como um exemplar da Vulgata de São Jerônimo, outro da Septuaginta, uma réplica da prensa de Gutenberg, que imprimiu a primeira Bíblia no idioma alemão, e uma biblioteca de 225 metros quadrados de obras dedicadas às Escrituras, com exemplares do livro em mais de mil idiomas, estudos acadêmicos e de referência etc.

Noutro vídeo, datado de 19 de maio de 2015, o apresentador, Ricardo Costa, mostra um mapa do Brasil com aldeias de povos indígenas (em verde) que já dispõem de Bíblias completas em seus idiomas, e outros (em azul) que têm apenas o Novo Testamento ou fragmentos dele. “A gente vê que tem muitos lugares que a Bíblia… a tradução da Bíblia precisa chegar para esses povos indígenas pelo Brasil”.

Afronta - Uma afronta criminosa ao artigo 231 da Constituição Federal é o que o apresentador Ricardo Costa e o Museu da Bíblia cometem nessa apresentação. O artigo estabelece: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Quem foi que disse que os Evangelhos fazem parte dos costumes, crenças, tradições e bens desses povos? Não fazem! Entregar a Bíblia para os povos indígenas corresponde a um estupro cultural!

Num dos encontros com o governador Ibaneis Rocha, o presidente da Sociedade Bíblica do Brasil, Assir Pereira, disse que o ponto previsto para a localização do museu tem um significado. “Está onde seria o leme do corpo do avião [o desenho do Plano Piloto de Brasília]”. Como se vê, os caras não escondem que a sua intenção é sequestrar na sua aeronave evangélica o povo do Distrito Federal e, em seguida, por meio do turismo, o povo brasileiro. Esse, sim, é o verdadeiro significado da metáfora do leme do avião!

Fica evidente que o Museu Nacional da Bíblia, tal como está concebido, com a previsão de ser administrado exclusivamente por denominações evangélicas,  representadas pela Conselho Nacional dos Pastores do Brasil e pela Sociedade Bíblica do Brasil, atenta contra o princípio constitucional da laicidade do Estado Brasileiro.

O artigo 5º da Constituição de 1988 diz que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] Inciso VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;”

Ora, onde está dito que a direção do museu terá um conselho paritário de representantes de todas as principais religiões praticadas no País, muitas das quais, aliás, também têm seus livros sagrados? Qual será o espaço para os judeus, os muçulmanos, os católicos romanos, os católicos brasileiros, os espíritas kardecistas, os umbandistas, o pessoal do Candomblé, os budistas, os xintoístas etc, e também os agnósticos, os ateus, os materialistas e os estudiosos da Bíblia como literatura, que nem eu? Em nenhuma carta de intenção ou protocolo consta essa exigência democrática, pelo que sei. 

Enganação - O Museu da Bíblia de Washington é outro modelo para o museu brasiliense, segundo o secretário Bartolomeu Rodrigues. Esse museu, no entanto, também está longe de respeitar a diversidade religiosa, mesmo entre as pessoas que têm na Bíblia a sua principal referência.

Um artigo da revista britânica The Economist, de 17 de novembro de 2017, informa que o museu apresenta as visões dos protestantes, dos judeus e dos católicos romanos, mas ignora o ponto de vista dos cristãos ortodoxos, o impacto da Bíblia sobre o Islã, e as opiniões dos estudiosos que afirmam que o livro não contém uma história coerente.

Obviamente, aquele museu não leva em conta, muito menos, o que pensam os agnósticos e os ateus sobre a Bíblia, e não será o secretário Bartô que mudará essa mesmíssima postura por parte dos organizadores do Museu da Bíblia em Brasília.

Segundo registra o verbete correspondente em inglês da Wikipédia, eis o que disseram sobre os organizadores do museu de Washington, financiado pela família Green e pela National Christian Foundation, os estudiosos da Bíblia Joel Baden, da Yale Divinity School, e Candida Moss, da University of Birmingham: "Eles enganaram o público em geral ao promover um programa de estudos e um museu que contam apenas a história que os Green desejam contar, sem reconhecer que estudiosos e especialistas passaram décadas, na verdade séculos, trabalhando para fornecer relatos muito diferentes da Bíblia e de sua história”.

Moss acrescentou: “Não é realmente um museu da Bíblia, é um museu do protestantismo americano. Todo o seu propósito é mostrar este país como um país cristão governado pela moralidade cristã”. 

E Baden completou: “Sua promoção de três minutos é uma demonstração fascinante desse problema. Pelo menos metade é uma reconstituição da história americana que não tem qualquer relação com a Bíblia - a assinatura da Declaração de Independência, por exemplo, ou a Guerra Revolucionária. A preocupação é a do museu retratar uma história da Bíblia que culmina no protestantismo e na América”.

Por que o Museu da Bíblia de Brasília adotaria uma abordagem diferente?

O secretário Bartô diz que os questionamentos agora levantados são “baseados em “interpretações apressadas, muitas preconceituosas, que precisam ser desmistificadas”.

Ora, o criticismo bíblico, que desmistificou a sacralidade do livro, apontando os seus verdadeiros autores (“homens comuns de grande imaginação”), já completou três séculos e meio. Os julgamentos aqui não têm nada de apressados. O Tratado Teológico-Político, do filósofo holandês Bento de Spinoza, dedicado à questão, foi publicado em 1670. Nele, Spinoza demonstrou como é que os autointitulados intérpretes da “Palavra de Deus”, rabinos, padres e pastores, distorcem e inventam sentidos ocultos para as Escrituras com o propósito de impor o seu poder político sobre as massas ignorantes. Era assim desde os tempos do reino dos hebreus, foi assim no século XVII e, pelo que se vê, continua assim até hoje. Spinoza sabia do que falava. A sua família, de origem judia, teve que fugir das fogueiras da Inquisição portuguesa, uma instituição católica lastreada na Bíblia interpretada pelo Vaticano, muito ativa em plena Idade Moderna e não na Idade Média!  

Falso Messias - O secretário Bartolomeu garante que “não se está pretendendo erguer (com o Museu) um templo de fé e de orações”. Baseado em quê diz isso? Será que não leva em conta o fato de seu chefe, o governador Ibaneis, ser um aliado chegado do presidente Jair Messias Bolsonaro, cujo lema inclui a frase “Deus acima de todos”, justamente para manter cativa a sua base neopentecostal?

Anotem aí: assim que for anunciado o projeto arquitetônico vencedor, no próximo dia 23 de março, se se confirmar o cronograma da Secretaria de Cultura, todas as autoridades “terrivelmente cristãs”, federais e distritais, a começar pelo presidente Bolsonaro, a ministra Damares Alves, o ministro André Mendonça e os parlamentares da Bancada da Bíblia, vão fazer o que puderem para fincar esse presbitério fundamentalista no coração de Brasília. O museu, se vier a ser construído, será mais um quartel-general, nas proximidades do Forte Apache, do projeto fascista & neopentecostal bolsonarista.

O que fazer? - Para não me estender muito mais, me pergunto o que poderíamos fazer para barrar esse projeto, que, além de ser uma desgraça cultural em si, não leva em conta prioridades como a reabertura do Teatro Nacional, fechado há sete anos.

Ainda não pensei detidamente em nada. Ontem, acabei me lembrando da piada do milionário que anunciou a construção de uma mansão à beira do Lago Paranoá, que iria atravancar a via pública no local. Um dia, caminhões despejaram areia e pedras na beira do terreno. Na manhã seguinte apareceu num montinho uma placa com a última palavra em letras garrafais: “Futuramente aqui: BUNDA!” O milionário arrancou a placa, e mandou que tocassem a obra. De vez em quando, a placa ameaçadora reaparecia, para logo ser removida. Quando a mansão ficou pronta, o milionário organizou uma festa de inauguração. Minutos antes da recepção, a placa brilhou soberana, em tamanho monstruoso, com uma só palavra: “BUNDA”. Foi um vexame, que não impediu a festa. As semanas se passaram e a placa sempre voltava a aparecer no jardim babilônico em frente à casa. Um dia, puto, o milionário resolveu erguer um muro. Lindo, branco, gigantesco. Mal secou a tinta, surgiu a pichação, de 20 m por 10 m: “BUNDA”. O milionário perdeu a calma. Viu que estava lidando com guerrilheiros, e que não tinha como vencer aquela guerra.  Dia seguinte, mandou derrubar o muro e a mansão. Mudou-se para Miami e lá passou cinco ou seis anos. Quando voltou, sentiu saudades. Resolveu reerguer a mansão no mesmo terreno, o mesmo projeto. Os caminhões trouxeram areia e pedras. Na manhã seguinte, num montinho de areia, o aviso numa plaquinha: “Futuramente aqui: BUNDA!”

Glorioso traseiro - A piadinha, clássica e vulgar, me fez lembrar de outra historinha, clássica clássica, dessa vez envolvendo o arquiteto, escultor, poeta e pintor renascentista Michelangelo Buonarroti. Como todo mundo sabe, Michelangelo, que se considerava um escultor, foi praticamente obrigado pelo papa Júlio II a pintar o teto da Capela Sistina com cenas do Velho Testamento, entre 1508 e 1512. Segundo algumas hipóteses, ele teria encontrado uma maneira subliminar de mostrar a sua insatisfação com o papa contratante na seção em que Deus é retratado criando o Sol, a Lua e as plantas. De um lado do afresco, Javé aparece de frente, separando o Sol da Lua. Do outro, ele aparece de costas, mostrando seu glorioso traseiro, gesto considerado um insulto já naquela época. Esse painel fica logo acima do altar-mor, de maneira que ao rezar a missa o papa Júlio II sempre via Deus mostrando-lhe a bunda. Maledetto Buonarroti! Para qual bispo o papa podia reclamar? 

A cena de Deus semipelado não está descrita no livro de Gênesis. Como Michelangelo era um sério leitor do Velho Testamento, é possível que ele tenha encontrado uma abonação para justificar o insulto no capítulo 33:17,19-23 do livro do Êxodo. Ali, Javé manifesta grande intimidade com Moisés, inclusive dizendo que o conhece pelo nome. Promete tratá-lo com misericórdia, e diz que se mostrará a ele em sua glória, mas só de costas, não de frente, “porquanto homem nenhum verá a minha face e viverá”. De acordo com o ex-jesuíta e biblista Jack Miles, em Deus, Uma Biografia, é possível que Deus, ao tomar esse cuidado, tenha querido esconder de Moisés a sua genitália, kahod em hebraico, significando também “fígado” e “glória”, segundo o linguista e estudioso da Bíblia Marvin H. Pope.

Leitores espertinhos poderão me perguntar: “O que é que você está sugerindo”? Ora, eu não estou sugerindo coisa nenhuma. Imitando o Cristo, eu também sou capaz de escrever em forma de parábolas. Como diz Mateus, quem tem olhos de ver, veja; e quem tem ouvidos de ouvir, ouça!