Emily Dickinson, Clarice Lispector e Cássia Eller, três estrelas que nasceram no dia 10 de dezembro
Três pedras de afiar a perspicácia

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

Ano passado, na Livraria Sebinho, comemoramos o aniversário conjunto de Emily Dickinson, Clarice Lispector e Cássia Eller, nascidas as três no dia 10 de dezembro de 1830, 1920 e 1962, respectivamente.

O ponto alto da festa foi a interpretação da cantora lírica Janette Dornellas de seis dos 12 poemas de Emily Dickinson musicados pelo compositor Aaron Copland.

Janette, grande amiga de Cássia Eller, contou episódios que viveram juntas e confirmou a informação de que Cássia era apaixonada por Clarice Lispector. Em 1990, Cássia regravou a canção Que o Deus venha, composta em 1986 por Cazuza e Frejat com base num trecho de Água Viva.

Neste ano do Centenário de Clarice, sem poder festejar no Sebinho, amanheci empolgado e logo tratei de rabiscar algumas linhas:

Dizem que o brilho
de dadas estrelas
conserva o fio das facas
contra a cegueira –

Emily Dickinson –
Clarice Lispector –
Cássia Eller –
Estrelas da mesma data –

Para alguns,
Ícones de cega idolatria –
Para outros,
Pedras de afiar a perspicácia –

Linguagem - Há muitos tratados sobre as manobras (invenções, reinvenções, subversos e tergiversos) que Emily e Clarice faziam com a linguagem para que essa ferramenta precária pudesse retratar tanto o Universo extenso quanto o pensado com algum rigor e precisão.

Emily dizia: 

The Brain – is wider than the Sky –
For – put them side by side –
The one the other will contain
With ease – and you – beside –

O Cérebro – é mais vasto que o Céu –
Pois – postos lado a lado –
Um ao outro conterá
Fácil – com Você – associado

Ela também criou uma vacina contra o desgaste das palavras:

A word is dead, when it is said
Some say -
I say it just begins to live
That day

Dizem que a palavra morre
Quando é dita -
Eu digo que ela nasce justo
Nessa data

Já Clarice, na pele de G. H., afirmou: “É exatamente através do malogro da voz que se vai pela primeira vez ouvir a própria mudez e a dos outros e a das coisas, e aceitá-la como a possível linguagem. (…) Ah, mas para se chegar à mudez, que grande esforço da voz. Minha voz é o modo como vou buscar a realidade; a realidade, antes de minha linguagem, existe como um pensamento que não se pensa, mas por fatalidade fui e sou impelida a precisar saber o que o pensamento pensa. A realidade antecede a voz que a procura, mas como a terra antecede a árvore, mas como o mundo antecede o homem, mas como o mar antecede a visão do mar, a vida antecede o amor, a matéria do corpo antecede o corpo, e por sua vez a linguagem um dia terá antecedido a posse do silêncio”.

Grude - Ocorre que a música é outro grude que liga essas três mulheres maravilhosas e, por isso, dias atrás comecei a me preparar para a comemoração do 10 de Dezembro traduzindo um poema da Emily que, vocês logo perceberão, parece um libreto de ópera.

A própria poeta, aliás, mestra de ritmos herdados dos hinos calvinistas da Igreja de seus pais, das canções irlandesas, dos spirituals do povo negro e do piano erudito e popular, achava que seus versos eram lotados que nem uma Ópera (“It’s full of Opera”, F381 (1862), como anotou o crítico Barton Levi St. Armand.

F708 (1863)

They put Us far apart –
As separate as Sea
And Her unsown Peninsula –
We signified "These see" –

They took away our Eyes –
They thwarted Us with Guns –
"I see Thee" Each responded straight
Through Telegraphic Signs –

With Dungeons – They devised –
But through their thickest skill –
And their opaquest Adamant –
Our Souls saw – just as well –

They summoned Us to die –
With sweet alacrity
We stood upon our stapled feet –
Condemned – but just – to see –

Permission to recant –
Permission to forget –
We turned our backs upon the Sun
For perjury of that –

Not Either – noticed Death –
Of Paradise – aware –
Each other's Face – was all the Disc
Each other's setting – saw –    

ACQ 06/07/2020

Nos afastaram Um do Outro –
Tão separados quanto o Mar
E Sua Península desolada –
Éramos “Os que podem enxergar” –

Nos arrancaram os Olhos –
Nos forçaram com Armas de Fogo –
“Te vejo” – foi a pronta resposta
Com Sinais de Telégrafo –

Em Masmorras – Nos segregaram –
Mas através das espessas tramas
E das Paredes mais opacas –
Se olharam ainda assim – nossas Almas –

Nos intimaram pra morrer –
Com suave impaciência
Nos erguemos com os pés atados –
Condenados – só à assistência –

Permissão pra abjurar –
Permissão para esquecer –
Demos as costas ao Sol
Para o perjúrio conter –

Nenhum de Nós – notou a Morte –
Ao Paraíso – atentos –
O Rosto de um – era o Disco
Que o outro viu no poente –

Quando li esse poema a primeira vez, notei que a história desses dois amantes se parece com a tragédia de Radamés e Aida na ópera do Verdi. Preferem morrer num calabouço a desistir do amor.

Enterrado vivo, Radamés se lamenta:

La fatal pietra sovra me si chiuse...
Ecco la tomba mia. Del dì la luce
Più non vedrò... Non revedrò più Aida.

A fatal pedra sobre mim fechou…
Eis a tumba minha. Do dia o fulgor
Não mais verei… Não reverei jamais Aida.

Quando Aida se junta a Radamés, ele chora:

Morir! sì pura e bella!
Morir per me d'amore...
Degli anni tuoi nel fiore
Fuggir la vita!

Morrer! Tão pura e bela!
Morrer por mim de amor…
Dos anos teus em flor
Fugir da vida!

Curiosamente, o poema de Emily foi composto oito anos antes da estreia de Aida na Casa da Ópera, no Cairo, em 1871. 

Giuseppe Ierolli, tradutor italiano da obra completa de Emily Dickinson, compara o poema – “uma solene ode ao amor” – a um coral em crescendo – a separação, os olhos arrancados, a repressão armada, a prisão, a condenação à morte e, por fim, a proposta da renúncia em troca da vida. Na versão original, o verbo ver (see) só não aparece na penúltima estrofe, quando os amantes dão as costas para o Sol, renovando mutuamente a fidelidade. No final, cada um vê o rosto do outro como um sol que se põe. Uau!

Canto de cisne - Clarice Lispector, por sua vez, encerrou a vida com a tragédia nordestina de Macabéa, em A Hora da Estrela, um romance  transpassado de música, a começar pela “Dedicatória do Autor”, com a advertência de que esse é, “Na verdade Clarice Lispector”.

Entre outros e outras, o livro é dedicado “ao antigo Schumann e sua doce Clara que são hoje ossos, ai de nós”; “à tempestade de Beethoven”; “À  vibração das cores neutras de Bach”; “A Chopin que me amolece os ossos”; “A Stravinsky que me espantou e com quem voei em fogo”; “À ‘Morte e Transfiguração’, em que Richard Strauss me revela um destino?”; “ao transparente véu de Debussy; a Marlos Nobre, a Prokofiev, a Carl Orff, a Schönberg, aos dodecafônicos, aos gritos rascantes dos eletrônicos – a todos esses que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos esses profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste instante explodir em: eu. Esse eu que é vós pois não aguento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter de pé, tão tonto que sou, eu enviesado, enfim que é que se há de fazer senão meditar para cair naquela vazio pleno que só se atinge com a meditação.”

Rodrigo S. M., o narrador, quer contar a história da nordestina Macabéa, mas não sabe como, demorando uma eternidade para engatar a narrativa. Vacila entre as palavras, “sons transfundidos de sombras”, e o silêncio.

“Com esta história eu vou me sensibilizar, e bem sei que cada dia é um dia roubado da morte. Eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo. E o que escrevo é uma névoa úmida. As palavras são sons transfundidos de sombras que se entrecruzam desiguais, estalactites, renda, música transfigurada de órgão. Mal ouso clamar palavras a essa rede vibrante e rica, mórbida e obscura tendo como contratom o baixo grosso da dor Alegro com brio. Tentarei tirar ouro do carvão. Sei que estou adiando a história e que brinco de bola sem a bola. O fato é um ato? Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta.”

Adiante, já namorando o metalúrgico Olímpico de Jesus, Macabéa, ouvinte assídua da Rádio Relógio, conta que ouviu uma música linda. “Era samba?”, pergunta Olímpico. “Acho que era. E cantada por um homem chamado Caruso que diz que já morreu. A voz era tão macia que até doía ouvir. A música chamava-se ‘Una Furtiva Lacrima’. Não sei por que eles não disseram  lágrima”.

Rodrigo S. M. diz que “‘Una Furtiva Lacrima’ fora a única coisa belíssima na sua vida (de Macabéa). (…) Mas também creio que chorava porque, através da música, adivinhava talvez que havia outros modos de sentir, havia existências mais delicadas e até um certo luxo de alma”.  

A moça morre, e a tragédia, como no Hamlet, termina em silêncio.

“Silêncio. Se um dia Deus vier à terra haverá silêncio grande. O silêncio é tal que nem o pensamento pensa”.

“No fundo – arremata Rodrigo – ela (Macabéa) não passara de uma caixinha de música meio desafinada”.

O amor arranha feito farpa - À guisa de encerramento, vou transcrever a letra da canção Que o Deus venha com um link no YouTube para a interpretação de Cássia Eller: https://youtu.be/ZiBjnE4Hvzo

Como já disse, trata-se de um trecho do romance Água Viva, de Clarice Lispector, editado com mínimas alterações e rearranjado em forma de versos por Cazuza e Frejat.

Qualquer dia desses a gente precisa recuperar mais informações sobre a paixão da Cássia pela Clarice, compartilhada com outra amiga sua, a pianista, maestra e compositora Dora Galesso, fundadora da Orquestra de Senhoritas em Brasília, falecida em setembro de 2018.

A Cássia era inquieta, claro, talvez um pouco áspera, desesperançada acho que não era. Curtia o delicado da vida!

Que o Deus venha

Sou inquieta, áspera
E desesperançad
Embora amor dentro de mim eu tenha
Só que eu não sei usar amor
Às vezes arranha
Feito farpa

Se tanto amor dentro de mim
Eu tenho e no entanto continuo inquieta
É que eu preciso que o Deus venha
Antes que seja tarde demais

Corro perigo
Como toda pessoa que vive
E a única coisa que me espera
É exatamete o inesperado

Mas eu sei
Que vou ter paz antes da morte
Que vou experimentar um dia
O delicado da vida
Vou aprender
Como se come e vive
O gosto da comida