A verdade está aquém da escritura, na vivência, trocas, fricções, planos falhados, conquistas, na “árvore dourada”
Seis continhos soturnos e um radiante

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

Il a mangé le riz des morts (Saint-John Perse)

O pai, sumido no mundo. A mãe, lavadeira, fazia bicos. Os quatro irmãos, palitinhos. Uma vez por mês, o moleque oferecia uma ceia pra família: mochi, oniguiri, sushi, frutas, verduras. Às vezes, até uma garrafa de saquê. Obaasan e ojiisan Maruyama repartiam a comida com o menino. Eram hóspedes do Cemitério Nossa Senhora de Santana, em Anápolis. Um dia, Ayumi, a neta do meio, flagrou o ladrãozinho. Ficou na dela. No mês seguinte, dobrou as oferendas. O garoto percebeu o desvelo. Passou a levar só metade do banquete. Não deixou mais o mato tomar conta do terreno. No Dia de Finados dava um jeito de oferecer flores para os novos padrinhos.

Esperança

Um homem distinto, não lembro se advogado ou professor. Faz muito tempo. No enterro teve discurso. Sobre o caixão, a bandeira do Brasil. Enquanto o corpo desce, pergunto por que não recolhem o pendão da Esperança. Atiram torrões de terra, aplausos, e a bandeira é sepultada também. Antes de voltar pra casa, passeio entre as ruelas com os números das casas pintados em plaquinhas de lata, que o vento tilinta. Aqui e acolá, um sabugueiro, um manacá, um pé de goiaba, um ror de flores. Até hoje o som de latas batendo me dá ânsia de Pátria e de Morte.

Gota a gota

O pivete descalço, de calção, na porta do Hospital Dom Bosco, perto do Banco do Brasil. Na boleia da camionete, um garotinho sangrando pela cabeça no colo de um casal de lavradores. Junta gente. Por que não levam o menino pra dentro do hospital? Junta gente. O homem e a mulher, siderados, olham pro nada. Nenhuma ruga se mexe, das tantas. Junta gente. Parece que o dono da camionete atropelou o guri, trouxe a família e fugiu. Junta gente. Por que não levam o pirralho pra dentro do hospital? Junta ainda mais gente. Gota a gota, o suspiro derradeiro e um soluço em figura de mãe. Quem levaria a sério um pivete descalço, de calção, fazendo perguntas bobas na porta do Hospital Dom Bosco, perto do Banco do Brasil?

Sangue

Sandrinha, 13, teve a primeira regra em novembro, em Jaru, comunidade do Barreiro das Antas, Rondônia. Pouca surpresa, nenhum alarme, imensa curiosidade. Correu e contou pra mãe, que já tinha comprado absorvente. A menina nem dormiu naquela noite. Imaginou uma roda de conversa com as seringueiras. Primas – ela gritou – agora eu sou que nem vocês, eu também sangro! As companheiras caíram na risada. No dia seguinte, uma sexta-feira, Sandrinha repartiu a alegria com a professora. Na segunda, desabou no choro. Soube que a tia Tereza tinha sido demitida depois de uma denúncia anônima. Disseram que ela ensinava sem-vergonhagem pros alunos e, pior, disse numa aula que a gente tinha vindo dos macacos e era parente das árvores, dos micróbios, das antas, das onças, das cotias e até dos gambás. Sandrinha não quis assistir a aula da nova professora. Foi se consolar com as primas da floresta.

Solo

Na porta do Hospital Metropolitano o seu Tonho, entregador de iFood, desolado, mordido. Perdeu a mulher, Joana, 34 anos, a filha Aninha, 7, Paulinho, 11, e talvez perca Suely, 9, que perdeu um braço no desabamento do barraco no Morro Socó em Osasco, São Paulo. A televisão mostrou a terra deslizando, engolindo tudo. Só deu tempo de agarrar um braço da Suely, Deus sabe como. A porta do guarda-roupa prendeu e levou o outro, escorregando no buracão. Seu Tonho conta que o Paulinho, 6º ano, nem faz uma semana tinha estudado desastres na aula de geografia. Moço, ele chegou feliz porque no Brasil não tem terremoto como no México, nem tsunami como na Tailândia, nem furacão como no Haiti. Filho, disse eu, eu acho que nesses países não tem gente pendurada no morro como a gente. O Paulinho riu.

Subsolo

Três da tarde, chuva, vento, um frio do caralho, pouca gente em trânsito. Desço a escada rolante para acessar a boca da Estação Galeria. Viro à direita e vem na minha direção uma mulher com um bebê de colo pedir um trocado. Ela deixa cair a cria no chão, esparramando um berreiro. Digo que “deixa” porque tive a impressão de que ela fez por querer. Parto pra cima da mulher também aos berros, acusando-a de pinchar a criança pra me aplicar o golpe da compaixão. Misericórdia, o senhor acha que eu ia fazer uma barbaridade dessa? E começa a chorar. Eu me agacho pra pegar o neném, uma trouxa de uma dúzia de panos. Para amortecer as quedas? Sim, eu me convenço de que a mulher é golpista. Dou-lhe cinco reais e saio bufando. Essa noite não prego o olho. E se eu tiver dado uma dica pra essa mãe desgraçada?

Sonda

Não nas vielas e impasses das entrelinhas mas sob as linhas socavo sentidos, como se fosse uma lacraia arqueóloga. Escalavro as fundações das palavras até a coifa das raízes. E sondo as camadas dos palimpsestos para desvendar enigmas antigos, novíssimos se desvelados. Tudo para, no fim, descobrir que a verdade está muito aquém da escritura, mesmo para o escriba mais genuíno. Está na vivência, trocas, fricções, planos falhados, conquistas. Está na “árvore dourada”! Sadir Bhatt, o Dedo de Nanquim, levanta-se da sombra do velho umbuzeiro e chispa para o estúdio. Quer anotar o pensamento do dia, antes que esvaneça com o suspiro do Sol. Sadir está inspirado apesar da maldita enxaqueca, irmã de criação.