Ermida Dom Bosco, sobre o paralelo 15: um monumento à enorme cascata inventada pelos políticos goianos para garantir a construção de Brasília no Quadradinho de Goiás. (Foto: Arquivo Público do DF).
A monumental cascata de Dom Bosco

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

Estava lendo o recente artigo do freelance do Observer de Londres, Chris Hall, alusivo ao aniversário de Brasília, com ênfase nos monumentos de Oscar Niemeyer. Matéria simpática, turística, não deixa escapar nem a Pizzaria Dom Bosco da 107 Sul. Daí pensei com o meu zíper - Ih!, lá vem a prosopopeia dos 60 anos, três meses antes da comemoração.

A discurseira oficial, como sempre, incluirá todos os clichês mítico-fundantes de Brasília: “Capital da Esperança”, “sede da nova civilização do Terceiro Milênio”, “Roma dos Trópicos” e por aí vai. Desses mitos, o mais divertido, na minha opinião, é o sonho de Dom Bosco, sacado do fundo da algibeira por alguns políticos goianos para justificar a construção de Brasília no Quadradinho de Goiás e abortar o plano dos mineiros de edificá-la em Minas Gerais, na região de Tupaciguara, às margens do rio Paranaíba.

Quem me contou essa história pela primeira vez, há mais de 20 anos, foi o jornalista e historiador Jarbas Silva Marques, do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, que me deu cópia de seu artigo com o resumo da manobra. 

Quadrilátero - Após recapitular as origens do movimento de mudança da Capital do Rio para o Planalto Central, desde meados do século 18, Jarbinhas chega até a eleição de Getúlio Vargas, em 1950, e à nomeação do general Caiado de Castro para a presidência da Comissão de Localização da Nova Capital Federal. Com o suicídio de Vargas, toma posse Café Filho, da UDN, partido contrário a JK e à transferência da capital, que se recusa a baixar o decreto para cumprir o dispositivo constitucional. Preocupado, o marechal José Pessoa viaja a Goiânia no final de abril de 1955 para conversar com o governador José Ludovico de Almeida sobre o impasse. A conselho do marechal, Ludovico toma a iniciativa de aprovar um decreto-lei para criar as condições objetivas para a mudança, incluindo a desapropriação dos terrenos no chamado Quadrilátero Cruls.

Baseado em longa pesquisa do historiador Lourenço Tamanini, Jarbinhas relata que os goianos continuaram apreensivos, mesmo depois de o presidente Juscelino Kubitschek ter assinado a “mensagem de Anápolis”, em abril de 1956, anunciando a criação da Novacap, a Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil. E mesmo depois de JK ter encaminhado o projeto de lei que definia o planalto de Goiás como local da nova Capital. Os políticos goianos temiam que o influente deputado mineiro Israel Pinheiro pudesse, numa treta de última hora, aprovar emenda ao projeto mandando construir Brasília em território de Minas Gerais.

Contrabando - Para evitar essa possibilidade, os goianos montaram “uma pequena operação de guerra”, segundo o relato de Tamanini, reconstituído por Jarbinhas. O governador José Ludovico havia mandado preparar um livrinho, intitulado A Nova Capital do Brasil – Estudos e Conclusões, com pronunciamentos de personalidades brasileiras simpáticas à localização da nova capital no planalto goiano. Sabendo que Israel Pinheiro era um tremendo papa-hóstia e devoto de Dom Bosco, o organizador do livreto, Segismundo de Araújo Mello, fez um contrabando místico-ideológico: acrescentou à coletânea, como peça de abertura, o sonho-visão de Dom Bosco.

Nas palavras do próprio Dom Bosco, transcritas no volume 16 de suas memórias biográficas, no sonho ele fazia uma viagem de trem ao longo da cordilheira dos Andes, desde a Venezuela até a Patagônia, passando pela fronteira da Bolívia com o Mato Grosso. Aí mesmo ele notou que, “entre o grau (paralelo) 15 e o 20 havia um leito muito largo e longo que partia de um ponto onde se formava um lago. E então uma voz disse repetidamente: ‘Quando vierem cavar as minas escondidas entre esses montes, aparecerá aqui a terra prometida fluindo leite e mel. Será uma riqueza inconcebível’”. 

Para não deixar margem a dúvidas, Segismundo acrescentou ainda ao livrinho, à maneira do carpinteiro do cavalo de Troia, uma foto de Dom Bosco com a seguinte legenda: “São João Bosco, que profetizou uma civilização no interior do Brasil, à altura do paralelo 15º, onde se localizará a nova Capital Federal". Como a faixa compreendida entre os paralelos 15º e 20º é larga demais, Segismundo forçou a barra para dar a entender que a profecia de Dom Bosco apontava com muita precisão a localização da futura Capital, isto é, no Quadradinho, rente ao paralelo 15º, e não mais embaixo do mapa, onde fica Tupaciguara, em Minas.

Rendição - Para concluir a operação de guerra, o ex-(primeiro)prefeito de Goiânia, o anapolino Venerando de Freitas Borges, se encarregou de fazer chegar a brochura adrede preparada às mãos de Israel Pinheiro, durante a visita que Juscelino Kubitschek fez a Uberaba, Minas, no final de maio de 1956. Antes da vinda de JK, o governador de Goiás havia comprado todo o espaço do Lavoura e Comércio, o único jornal da cidade, e todo o tempo de sua única emissora de rádio. Segundo Tamanini, depois que a brochura foi entregue a Israel Pinheiro, devoto do santo, estava selada “a rendição do último baluarte de resistência” dos mineiros.

Esse fato foi consolidado quando Israel Pinheiro, já na condição de primeiro prefeito de Brasília, determinou que a primeira peça de ferro e o primeiro saco de cimento fossem usados na construção da Ermida Dom Bosco, desenhada por Oscar Niemeyer para ser erguida sobre o paralelo 15.

Um detalhe interessante é que o mesmíssimo trecho do sonho-visão de Dom Bosco já havia sido usado por Monteiro Lobato, em 1935, na sua campanha de “O Petróleo é Nosso”! Em artigo publicado no Diário de São Paulo, em que transcreveu o sonho, Lobato tascou que “até os santos afirmam que há petróleo no Brasil”.

Para os brasilienses, o lago referido por Dom Bosco viria a ser o Lago Paranoá. Para Lobato, seria o pantanal do Mato Grosso na época da cheia. Mitos e sonhos, como se vê, estão sempre abertos à interpretação, conforme o gosto do freguês ou de quem está fazendo análise.

Jarbas Silva Marques diz que a ditadura de 64 utilizou a monumental cascata de Dom Bosco “para fazer esquecer a decisão política e administrativa do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira de construir Brasília, cantilena que até hoje persiste nas bocas de pseudo-historiadores e governantes, parlamentares e os mais variados seguimentos culturais, repetindo que a capital da República e a luta do povo brasileiro para a interiorização da capital federal deve-se ao sonho do educador italiano”.