O roteirista francês Jean-Claude Carrière morreu no dia 8 de fevereiro, aos 89 anos
A linguagem secreta de Jean-Claude Carrière

João Lanari Bo –

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir para o diabo!
Para que havermos de ir juntos? (...)

Álvaro de Campos, in Lisbon Revisited (1923)

Quem se der ao trabalho de checar a Base de Dados de Filmes na Internet (IMDb) de Jean Claude Carrière – que foi desta para uma melhor no dia 8 de fevereiro, quando dormia o sono dos justos – pode levar um susto: são 153 roteiros escritos para cinema e TV, sem falar nos livros e artigos, diálogos recolhidos, uma produção caudalosa e inigualável, elaborada talvez sob o signo do efêmero, como afirma no seu soberbo Prática do Roteiro Cinematográfico, feito com Pascal Bonitzer:

Objeto efêmero: o roteiro não é concebido para perdurar, mas para se apagar, para tornar-se outro. Objeto paradoxal: de todas as coisas escritas, o roteiro é que contará com o menor número de leitores, talvez uma centena, e cada um deles buscará nele seu próprio alimento: o ator, um papel; o produtor, um sucesso; o diretor de produção, um percurso inteiramente traçado para a fixação de um plano de trabalho.

A isso se chama de “fazer uma leitura egoísta”, ou seja, parcial. Só o diretor cinematográfico, que contribuiu com frequência para a composição do objeto, vai lê-lo totalmente, a ele retornando sem cessar como a um posto de socorro onde tudo se encontra, espécie de lembrete, sem falhas, às vezes chamado de Bíblia.

Mas não foram apenas roteiros. As conversas de Carrière com parceiros ilustres são conhecidas. Com Umberto Eco, o diálogo fluiu como se deslizando num lago gelado, superfície dura que esconde uma massa líquida:

Mas se agora dispomos de tudo sobre tudo, sem filtragem, de uma soma ilimitada de informações acessíveis em nossos monitores, o que significa a memória? Qual o sentido dessa palavra? Quando tivermos ao nosso lado um criado eletrônico capaz de responder a todas as nossas perguntas, mas também àquelas que não podemos sequer formular, o que nos restará para conhecer? Quando nossa prótese souber tudo, absolutamente tudo, o que devemos aprender ainda?

Indagou o roteirista, ao que respondeu o italiano:

- A arte da síntese.

...e a tréplica:

- Sim, e o próprio ato de aprender. Pois aprendemos a aprender.

Outro de seus diálogos foi com dois astrofísicos, Michel Cassé e Jean Audouze, publicado sob o título “Du nouveau dans l’invisible”:

Quantas vezes na história do mundo, e em todas as culturas, já ouvimos falar dessas comunicações aéreas e misteriosas, rápidas, furtivas, geralmente atribuídas a espíritos ou a anjos, ou mesmo ondas cerebrais, ou alguma forma de transmissão de pensamento, comunicação instantânea à distância, portanto tomar drogas, principalmente meditação concentrada, presente, de um sonho agonizante e premonitório, de uma clarividência, da descida de o Espírito Santo, de um mensageiro celestial desconhecido, da linguagem secreta das árvores, do mar, o vento, um cogumelo, certos animais ...

Ao ceticismo dos interlocutores, que invocaram clichês da humanidade confundindo assuntos científicos com matéria barata espiritual, Jean-Claude respondeu:

Perdoe-me se insisto. Essas transmissões no imenso invisível, que nos perseguiram desde o início, sem dúvida, que agrupamos sob as palavras "pensamento mágico", ou xamânico, e que necessariamente toda uma máfia de charlatões, seria, portanto, baseada em "alguma coisa”? Em alguns elementos realmente físicos?

E talvez a incursão mais ambiciosa desse espírito inquieto, a adaptação que fez com Peter Brook do épico indiano, Mahabharata:

Homem ou deus? Obviamente, não cabe a nós decidir. Qualquer verdade teológica ou histórica, controversa por sua própria natureza, está fechada para nós - nosso objetivo é uma certa verdade dramática. É por isso que escolhemos manter as duas faces de Krishna que estão no poema original, para enfatizar sua natureza oposta e paradoxal.

A aplicação (consciente) do seu espírito cartesiano francês a um texto que ultrapassa todas as medidas possíveis era um dado incontornável. Um encontro casual com Brook em 1974 os atiçou com a ideia de produzir uma peça baseada no épico. Juntos, eles viajaram pela Índia, em busca de todas as formas teatrais possíveis do grande poema. O resultado foi uma peça épica - 9 horas com dois intervalos - posteriormente transformada em filme e série de TV, que se tornou um marco no teatro.

A fim de adaptar o Mahabharata, para transformar um imenso épico poema em uma peça, ou três peças, tivemos que desenhar novas cenas de nossa imaginação, reunir personagens que nunca se encontram no poema em si. Tudo isso dentro de um contexto de profundo respeito pela forma e sentido da história. Cada um desses personagens tem um compromisso total, cada um examina em profundidade a natureza de suas ações, cada um considera seu dharma, e cada um confronta sua ideia de destino. Então tivemos que estimular para cada um desses personagens que fosse ao seu mais profundo interior sem interpor nossos conceitos, nossos julgamentos ou nossa análise calçada no século XX, na medida do possível.

Outro produto dessa viagem foi o magnífico livro feito a partir das notas que Carrière fez durante as andanças na Índia, cujo encanto é realçado por suas ilustrações espirituosas que percorrem as páginas:

Logo abaixo do hotel, um templo barulhento, cheio de vida, bastante primitivo. Multidões de mulheres juntas, gritando. Diz-se que é um templo de ciganos. Como às vezes acontece, Peter não tem permissão para entrar, exceto no pátio, por causa de seus cabelos claros e olhos azuis. Já que eu tenho cabelo muito curto e pele bronzeada, eles me deixam entrar. Às vezes finjo que sou da Caxemira, chegando a pronunciar algumas palavras em uma linguagem estranha. Normalmente funciona. Uma vez peguei uma criança pequena (elas estão por toda parte) e entrei no “sanctum sanctorum” carregando a criança nos braços. Ninguém me disse nada.

Comentando sobre a Índia com Umberto Eco:

A propósito dessa exuberância (o mundo pós-internet), através da qual cada um é obrigado a desbravar seu caminho custe o que custar, penso às vezes no panteão indiano com suas 36 mil divindades principais e suas divindades secundárias, em número ilimitado. Apesar dessa dispersão do divino, ainda assim há grandes deuses que são comuns a todos os indianos. Por quê? Existe um ponto de vista que na Índia é conhecido como o ponto de vista da tartaruga. Você coloca uma tartaruga no chão, as quatro patas para fora da carapaça. Ela representa os quatro pontos cardeais. Você monta na tartaruga, que é um dos avatares de Vishnu, e escolhe, das 36 mil divindades que você percebe à sua volta, as que lhe falam de um modo especial. Depois disso, você traça seu caminho. Para mim, isso é igual, ou quase, ao caminho pessoal que podemos percorrer na Internet. Todo indiano tem suas divindades pessoais. E, no entanto, todos partilham uma comunidade de crenças.

E sempre, sempre com a consciência absoluta do ato de escrever, de produzir mundos, ficções, da Bela da Tarde de Buñuel ao Mahabharata com Brook:

Comecei a escrever, sem pressa. Tento encontrar o tom, o vocabulário. Eu fazia listas de palavras estritamente proibidas para mim, todas aquelas que contêm algo ocidental, parasitário (nenhuma palavra é neutra ou inocente). Tal como a palavra 'nobre', a palavra 'cavaleiro', que está ligada ao nosso folclore, nossa história. Impossível usar 'dardo' (inseparável, para alguns, de imagens dos legionários romanos). Mesmo ‘lança’ ou ‘espada’ são suspeitos, ‘sabre’ é banido. Um cavalo não pode ser uma 'montaria' porque parece que a cavalaria não existe. ‘Desassentar’ não é adequado, ‘profeta’ muito bíblico. Cada pequena frase representa um problema. Certos conceitos, como ‘dharma’, são impossíveis de traduzir. Tem que ser explicado (como está no coração do livro), sem dúvida, inventando uma cena.
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Nota do editor: Em Brasília, muita gente se lembra do workshop de Carrière, em setembro de 1996, um marco nas atividades cinematográficas da cidade. Essa atividade foi realizada por iniciativa do então secretário de Cultura Silvio Tendler.