Conto de José Carlos Peliano, em homenagem aos operários construtores de Brasília, recebeu menção honrosa no Concurso Alan Viggiano de Literatura, do Sindicato dos Escritores do DF/2021
O lago que para no ar

José Carlos Peliano (*) –

Este conto em homenagem aos operários construtores de Brasília e desbravadores das terras do Planalto Central foi escrito para o Concurso Alan Viggiano de Literatura oferecido pelo Sindicato dos Escritores do Distrito Federal neste início de 2021. Da seleção dos trinta finalistas ficou entre os 10 premiados finais tendo recebido menção honrosa.

A homenagem se estende ao meu grande amigo Manfredo Caldas †, cineasta e documentarista de câmera, coração e pés no chão, ganhador de vários prêmios cinematográficos, que já tinha realizado documentário sobre a história da construção de Brasília, Romance do Vaqueiro Voador de 2008, inspirado no cordel de João Bosco Bezerra Bonfim.

“Lá estava, um a mais na procissão de dias, acocorada, cotovelos nos joelhos, mãos apoiando a cabeça, parecia corcova de cupinzeiro, imóvel, olhar fixo, onde? Nem a respiração preguiçosa lhe movia, tampouco o friozinho conseguia tirar dela alguns arrepios, manhãzinha bem cedo, somente ela e alguns quero-queros trocando passos pela beira do lago, encoberto por uma larga e rala cobertura, qual algodão doce.

Genésio faz é tempo notava toda manhã ao acordar para suas tarefas de amarração e armação de vigas e colunas no canteiro de obras da construção da capital do país que ela, Genoveva, a dona Gê, permanecia ali naquele mesmo lugar perto do acampamento dos peões, agachada, parada no alto de um monturo de terra, feito galinha chocando. Ali ficava por um tempo desde antes da luz do dia chegar ao chão e findava no toque da sineta chamando os operários para acordar, saírem do chão, levantarem os corpos e esticarem as pernas para irem também levantar os prédios da cidade nascente de Brasília.

Ela por igual se desenroscava da corcova para voltar e terminar de aprontar o café matinal acompanhado de pão dormido, manteiga quando tinha, um grande bule de café e de vez em quando, e insistentes pedidos, queijo ou tapioca. Ela era quem dirigia a cozinha improvisada para dar conta do grupo de 8 amigos operários companheiros de Genésio, entre eles Bento, seu filho pedreiro. Com ele viera das entranhas do agreste nordestino, como dizia, não tão de junto de Juazeiro em Pernambuco, para tentar a sorte na nova terra.

Rio não passava por onde morava. Chuva? Algumas gotas descompassadas entre luas de distância umas das outras. Assim o Agreste vivia, um teste de vida de seus habitantes, heróis viventes, cada um deles um ser tão forte para segurar a vida que no sertão quase sempre ganhavam as quedas de braço com a morte. Cada qual um ser tão vivo que a morte adiava a chegada para quando o sangue já virasse pó de terra e não desse mais para escorregar pelas veias aramadas, um trançado de filetes secos e endurecidos.

Ao revés, começo do ano ali naquele pedaço de chão do planalto central as gotas de chuva desfilavam cortinas e cortinas de águas varando o céu das nuvens carregadas até se estenderem por todos os cantos, empoçados, rios, lagos e vertedouros. Nem os troncos retorcidos pelos bafos de seca na segunda meia do ano na região deixavam de pipocar em sua cobertura de casca dura e ressequida brotos de verdes suspiros e arquejos.

Curioso e intrigado com a mania de dona Gê na beira do lago todo dia bem cedo espiando sabe-se o quê, Genésio animou-se meio sem jeito e, de repente, perguntou-lhe naquela manhã o porquê de ela ir lá acordar as águas tantas vezes nos últimos meses. Era o fim do café e ele remanchara de propósito para estar a sós com ela e lhe lançar a pergunta. Um silêncio demorado tomou conta do ambiente, os dois sem graça espiando o chão.

Ela respirou fundo depois de uma lapa de tempo e disse: “Gê, tinha eu de vê as nuve de água subi e pará no ar”. Sorri docemente. “Nunca vi coisa iguá lá no Agreste, mutcho lindo”.

Genésio seguiu-a no sorriso e respondeu que já conhecia essa água que vira nuvem no lago. Lá no interior de Minas, entre rios, de onde viera, a esse tipo de nuvem o povo chama de névoa, quando rala, ou neblina, quando fechada, continuou. Um chão encharcado de chuva ou um lago inteiro ou porções dele ou ainda fatias de rio, cada um debaixo do frio do dia, pode criar arrepios do jeito de suores d’água que parecem gelo bem fininho virando espumas de gotas d’água, completou.

Genésio se despediu de dona Gê, sem antes lhe dizer que gostou da prosa. Sorriu e arrematou, dona Gê, olhe, você fez um bonito verso. Uma nuvem que fica em cima do lago como fosse o lago no ar. Então, essa nuvem é a mesma água do lago que sai dele, ela sente o frio em sua pele molhada pelo ar mais frio que vem de fora. É feito a gente soprar o ar no inverno bem frio e o sopro virar uma nuvem de fumaça úmida. Aqui o lago meio que sopra o ar de frio, o sopro sobe e fica no alto no ar. Lago que para no ar. Ela sorriu e disse baixinho pensar em viver por essa terra, “aqui tô feliz, pra vivê numa terra nova, de esperança, de nuve e de água”. Despediu-se e foi tratar de tirar a mesa do café para já deixar pronta a do almoço. Ele seguiu sabendo agora o porquê da mania de dona Gê toda manhã e do jeito dela foi ele agora montar os ferros das armações que também, pensou, param no ar.

Um lago que para no ar, no alto, ou lagoa como se fala no Nordeste, saiu dali remoendo a ideia. Ao pegar as barras de ferro na montagem das armações para as colunas e vigas da estrutura do Palácio do Planalto se deu conta que planalto era também uma terra que para no alto, ar acima. Como as nuvens de poeira na seca do Agreste quando o chão pega uma lapada de vento e vira uma terra que sobe e para um tempo no alto do ar. Como o lago que dona Gê viu subir e parar no ar”.


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(*) José Carlos Peliano, poeta, escritor, economista.