Na escada social quanto mais degraus e mais espaçados forem um do outro, pior a desigualdade; quando mais gente nos degraus do meio para baixo igualmente pior a desigualdade
Quantos degraus precisa ter uma escada?

José Carlos Peliano (*) –

Quando pequeno eu não gostava muito de subir escada, queria sim chegar lá em cima para ver o que tinha, mas as pernas e os pulmões muitas vezes me seguravam nos primeiros degraus, ou ia no colo ou com ajuda de alguém ou procurava um elevador quando tinha ou estancava. Imaginava o João do pé de feijão o esforço que deveria ter feito para subi-lo até o céu, embora fantasiasse o que e como podia para me encantar com o que ele poderia ter visto lá por cima.

Mas gostava muito mais de descer escada pelo alívio que causava em minhas pernas, joelhos, pés, pulmões e o coraçãozinho de calças curtas depois de ter visto o andar de cima. Desde a idade que comecei a ver e a entender o mundo ao redor as escadas me fascinavam. Era como se existisse outro mundo como o do chão ou quiçá diferente dele lá por cima e quanto mais escadas encontrasse mais chances de ter coisas inesperadas e interessantes eu poderia vir a encontrar.

Lá pelas tantas me perguntava “quantos degraus precisa ter uma escada? ”. Elaborei com o que achava possível até então e igualmente com o fantástico, porque a fantasia me vinha logo nos pensamentos, que quanto maior fosse ela mais degraus teria e maior a recompensa ao chegar ao último degrau. E assim foi e assim veio por muitos anos. Para mim, a escada era um símbolo de passagem para novas descobertas sempre interessantes por menores e poucas que fossem, simbolizava outro mundo ou parte de outro mundo por cima do chão onde a vida vinha junto com toda a gente, casas, ruas, terra, árvores, por cada dia da ciranda dos dias.

Não deixei de trazer comigo até hoje a sensação do inesperado que traz uma escada, seja ela qual for, da menor à maior, da estreita à larga, da simples à sofisticada. Mesmo em minha casa de dois andares construída de um belo projeto de uma arquiteta que ficou amiga, Fatah Mendonça, escolhi uma escada em balanço, linda, elegante, feminina, ousada, sensual. Feita em dois passadiços cruzados somente é presa no chão e no piso do segundo andar, enquanto na virada dos passadiços ela é solta sem suporte tendo apenas o ar a segurando. Talvez seja para mim, lá bem dentro onde os sonhos perambulam, o símbolo da casa. E ela chama a atenção de muita gente. E toda vez que a subo e lá em cima chego, a sensação de surpresa é a mesma embora sabendo que meus livros, móveis, objetos e coisas estão por lá do jeito de sempre.

Para coroar meu fascínio por ela eu presenciei os dias em que foi montada e construída peça a peça. A perícia, a destreza, o saber, sem curso nem diploma, de dois exímios pedreiros ergueram a passagem dos dois mundos da casa, o de viver o dia a dia e o de sonhar e aprender entre livros, vídeos, telescópio e um céu que não se cansa de trazer seus astros e estrelas diariamente para dentro de meus olhos.

Pois bem, os dois pedreiros foram separando e trançando os ferros de armação, degrau por degrau, apenas ajustados pelos níveis com fio e prumo usados pelas mãos de cada um e por seus olhos ao tempo em que preparavam o apoio nas estruturas de madeira para ir elevando a escada passo a passo. Não pararam nunca para se perguntar ou ao responsável se a estrutura estava certa e indo bem.

Era como se fosse um verdadeiro brinde à beleza simples, mas majestosa e perfeita de mãos calejadas. A escada surgia aos poucos dessas mãos trazida pela intuição e atenção dos dois mestres sem referências nas bibliotecas salvo meu atestado visual de inesquecível alumbramento. Tiraram a escada de malhas de ferro e arame seguras por cimento, areia e água. Só faltaram me dizer, embora insinuassem, que a escada já estava nesse conjunto de materiais, que eles apenas tiraram ela de lá para que eu pudesse subir e descer entre os dois mundos de minha casa. Um brinde eterno!

O mais incrível veio por fim, os degraus são do mesmo tamanho, largura, altura e extensão, não faltou nem sobrou centímetros em nenhum deles, tendo a mesma quantidade de degraus nos passadiços para baixo e para cima. O olho do furacão é o mesmo da mina d’água, o jeito de ver é que é a diferença.

Meu veio poético convive com o outro de economista. Convivem bem, um suportando o outro, o que me dá ajustes providenciais para ver e entender as coisas, e escrever textos como esse. Daí que a escada pode ser então, como argumentado, um símbolo de beleza e fascínio como pode ser também uma marca de segregação social. De fato, a sociedade em qualquer canto do mundo pode ser vista como uma escada para ser subida, onde a maioria, no entanto, fica nos degraus do meio e da base e a minoria nos degraus de cima. A maioria tentando subir atrás do sonho de melhoria de vida e a minoria tentando lá por cima manter o poder e o status econômico-social adquirido.

Quanto mais longa a escada, piores as chances dos que estão em baixo chegarem mais para cima, quanto mais curta, melhores os esforços da maioria. Mais degraus maiores as diferenças sociais, menos degraus menores as diferenças. Existem, entretanto, nuances nos dois casos.

Numa escada longa a maioria das pessoas pode estar concentrada nos degraus de baixo ou pode estar mais ou menos repartida em todos os degraus. Assim, no primeiro caso, a desigualdade social é maior que no segundo caso. Por outro lado, se em duas escadas os degraus têm alturas diferentes, a escada de degraus mais acentuados é mais difícil de subir, logo a desigualdade estampada por ela é maior e vice-versa.

Da escada entre simples andares, portanto, à escada social a diferença está no tamanho ou no número de degraus de cada. E por certo no uso de cada uma. Se é simplesmente para subir e descer de andares ou se é para subir e descer na vida. A primeira opção é a mais fácil, já a segunda pode levar uma vida inteira, e pior muitas vezes sem se conseguir o que se quer. Na atual fase do neoliberalismo desenfreado, especialmente em nossa pátria desamada, a escada social é a pior possível. Estamos entre os primeiros piores países em desigualdade social, particularmente nesses últimos anos de desgoverno.

Para entender melhor fica aqui um resumo. Na escada social quanto mais degraus e mais espaçados forem um do outro, pior a desigualdade; quando mais gente nos degraus do meio para baixo igualmente pior a desigualdade. Ou seja, se a disposição dos degraus for inversamente proporcional à disposição de gente distribuída entre eles, pior a situação; mas se as disposições forem diretamente proporcionais, a situação é melhor. Desnecessário mais oportuno lembrar que no caso brasileiro a série de degraus está inversamente proporcional e muito à série de gente querendo subir, tendo boa parte delas descido os degraus ao longo do tempo e outra parte sem chance alguma de sequer por o pé no primeiro.

E com a pandemia a quantidade de gente que cai escada abaixo é ainda maior, sem tamanho. Sofrem e morrem mais os que não têm condições de ficar em casa porque não têm casa, nem trabalho, tampouco renda para se sustentar. Muito menos um governo que se preocupe e cuide da saúde e vida da população do país.


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(*) José Carlos Peliano, poeta, escritor, economista.