José Carlos Peliano: Os cantos das lavadeiras, das índias, das cortadoras de cana e das ceramistas ecoam por todos os dias, ventos, águas e grotões em chamamento das mulheres para o movimento de luta, esperança e glória...
Canto como a sabiá, que sabe a, e, i, o, u!

José Carlos Peliano (*) –

A lembrança de lavadeiras cantando na lavagem de roupas na beira do rio me vem trazendo todas, em conjunto afinado, sonoro, tocante. Pensava então o que significava o canto além do próprio canto encantado de ser cantado. De repente lá de dentro me veio a intuição da resposta: é que elas não estão mais ali, elas se foram para um lugar abençoado que só elas sabem e visitam toda vez que vêm juntas lavar roupas. Assim era, assim foi, assim é e assim será.

Mesmo que elas não deem conta disso, dizendo que é só por cantar, pelo belo e simples prazer de cantar. Elas se vão dali e delas mesmo e se encontram na parte delas que vive fora lá onde há força, energia, candura, união e irmandade. Lá onde cada uma vale por todas e todas por uma, um Robin Wood tropical, não de arco e flecha na mão, mas de roupas, nas mãos duras, marcadas pelo tempo, amaciadas pela água do rio, protegidas pela lavagem, prontas para se darem umas às outras na defesa de seus ideais, sonhos, propósitos, alegrias e sorte. Um trançado de mãos, cantos e fé no trabalho feito de cantoria.

Atrás delas me vem outra lembrança de mesmo reino, a das índias nas aldeias milenares de nosso país tirando farinha da mandioca, cuidando das malocas e dos filhos de todas, olhando por todas quando os homens estão fora na caça, na extração de raízes, frutos e frutas e na pesca. Ainda cantam e dançam juntas nas cerimônias batendo os pés para conclamarem a terra a reverberar seus cantos e preces aos deuses da selva. Um colar de pureza e resistência enraizado entre elas e os espíritos da selva e os encantados dos antepassados que nunca se vão.

As cortadoras de cana que acordam as manhãs estrada afora com suas foices e balaios dependurados no corpo seguem por cantigas de ontem e de sempre dando tempo ao tempo para que ele as cuide sem vê-lo passar. Suas mãos calosas e suadas cuidam dos cortes de canas retirados para irem bem cuidados aos balaios. Encantam o calor do sol com seus cantos a ponto de o deixar menos quente, duro, cortante. Um emaranhado de folhas de cana que ligam uma à outra numa fileira verde de tenacidade, urdidura e coroação de trabalho.

As mulheres simples ceramistas do Vale do Jequitinhonha também, muitas delas, levam suas mãos em cantos na moldagem do barro, dele retirando e revelando rostos, perfis, personagens, visões e sonhos em belos trabalhos da cor das cores ou do barro. Quando não cantam por fora, cantam por dentro na pauta do silêncio revelador de uma cantoria divina que vem lá de onde as fadas se congregam. Tiram das minas de seus mistérios o barro encantado das terras das Minas Gerais, cujas minas são gerais demais.

Os cantos das lavadeiras, das índias, das cortadoras de cana e das ceramistas ecoam por todos os dias, ventos, águas e grotões em chamamento das mulheres para o movimento comum de criação do espírito de luta, esperança e glória de uma paz duradoura entre todos. Um movimento que chegue às vilas, cidades, becos, ruas e casas, dentro e fora da quarentena na atração de mulheres e homens de todas as idades para cantarem juntos a canção da libertação dos desmandos e delírios de autoridades de mãos sujas, mentes torpes e pés imundos.

Outras mulheres ou grupos de mulheres não ficam aquém na maneira de condução de sua labuta diária como as catadoras de lixo, as enfermeiras, as faxineiras, as feirantes, as cuidadoras de idosos ou enfermos, ambulantes, domésticas, entre outras. Por que as mulheres somente? Porque a maioria delas não só ajudam na renda familiar, como também são as donas da casa sendo ou não mães solteiras ou quando os maridos se foram. São elas de fato e de direito o sustento e a formação do quadro geral da família brasileira. Elas cuidam dos filhos, da casa, da renda e do carinho e amor familiar.

Na lida do trabalho e da vida é preciso cantar se faz escuro, como cantou belamente Thiago de Mello (Estatuto do Homem, na foto, abaixo), ou se faz sismo, quando há que se recuperar canções, poesias de toda arte, artes de toda poesia para que desviemos de sinais sem direção, sem rota, sem futuro. O futuro há que ser reinventado e recuperado pela criatividade de todo tipo de arte. A criação de um tempo e espaço fora do dia a dia onde todos se encontrem para se libertarem da vida criada que anda de costas em benefício de poucos e em detrimento de muitos.

Lavadeiras, índias, cortadoras de cana, ceramistas e tantas mais cantam não só para saírem da monótona entonação das tarefas diárias, dos trabalhos e serviços, mas também e principalmente para criarem uma nuvem melódica ao redor delas a fim de se juntarem todas em conjunto harmônico e se deixarem estar nesse mundo espontâneo em criação, mas duradouro em convivência. Tratar o trabalho e os serviços com canções adocicadas, com versos simples e encantados, com entonações singulares e plurais. Nessa nuvem vai a mensagem florida de união, cooperação, fraternidade, beleza e celebração.

É da forma, da cor e do som que o universo primordial surgiu do Big Bang como querem muitos cientistas ou do nada como admite Steve Hawking e querem outros, ou do mistério ainda não conhecido ou revelado onde me situo junto a outros tantos. Daí que somente a arte em suas mais variadas expressões é capaz de criar e inventar o modo de viver de cada um, de todos e da civilização de maneira rica e perene. Axé Michelangelo, Rachmaninoff, Monet, Niemeyer, Machado de Assis, Portinari, Pessoa e a miríade esplendorosa de artistas deuses ou deuses artistas que elevaram a arte humana aos píncaros da beleza imorredoura.

O valor da arte vem da criação que nasce da potência de cada um em sua expressão mais subjetiva e rica: sua moldagem de ser e em ser na vida. Essa subjetividade aceita e reconhecida em si de cada um é a maior fortaleza que pode ter um ser humano com a qual tem toda a carga de sobrevivência, vivência e luta na busca de sua própria revelação e a do mundo em harmonia com os demais.

E o lugar e a oportunidade da arte são importantes em toda etapa da civilização e mais ainda se tornam imprescindíveis em momentos de autoritarismo e despotismo. O que mais atormenta e enfurece governos nesses momentos é a arte exatamente porque ela é libertadora de todas as amarras ideológicas e mandatórias. Tanto que regimes como esses são contra as várias manifestações da arte como livros, esculturas, pinturas, teatros, cinemas, canções, entre outros, e seus criadores ou intérpretes.

Nesse embate anti-civilizatório cabe a arte se expressar mais e mais para romper as cercas autoritárias e afirmar a voz do povo incorporada nas várias manifestações artísticas. Ainda mais porque o povo necessita da arte para viver melhor e encontrar seu tempo e espaço de paz e tranquilidade nem que seja cantando canções, lendo livros, apreciando obras de arte e assistindo peças teatrais ou películas.

Faz escuro, mas eu canto como Thiago de Mello, faz sismo, mas eu canto em todos os cantos como Chico, Caetano, Gil, Tereza Cristina, e tantos tesouros como as lavadeiras, as índias, as cortadoras de cana, as ceramistas, outras tantas mulheres guerreiras e a sabiá que sabe a, e, i, o e u!
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(*) José Carlos Peliano, poeta, escritor e economista.