Aquarela de Luiz Martins da Siva
Extremo farol. Ou, a Patagônia é uma dívida sentimental

Luiz Martins da Silva -

Eu o vi num filme hispano/argentino. O cinema argentino só perde para o brasileiro... Bobagem. Cada um com o seu. Brasil, Pelé e Garrincha. Argentina, Maradona e... À escolha. Aguero? Ufa! Será que não podemos falar de assuntos argento-brasileiros sem esse cacoete provinciano de comparação, competição, rivalidade? Somos diferentes. E os diferentes não são comparáveis. Por serem distintos. Nós, Farol da Barra. Eles, Farol das Orcas. Nós, Amazônia. Eles, Patagônia.

Vi um hotel cheio de argentinos, em Fortaleza. Vinham de carro, família, atravessando quase um continente, deslizando pela nossa orla. Alguém, daqui, riscaria rumo ao Sul um mapa de uns 8 mil km? Sei não. De carro, eu, não mais. Desse jeito de ir, não vale mais a pena, pousada em pousada, até o ‘fim do mundo’ – meias aspas para o desespero dos marujos de Fernão de Magalhães. À medida que não encontravam “a passagem”, deduziam que tinham embarcado com um homem-diabo que levava ao inferno. E, ao contrário das descrições antes supostas, o Inferno não era para ser um galpão interminável de fogueiras e caldeirões assando e fritando pecadores. O Inferno, gelado; morrer e purgar eternamente as culpas, queimando de frio.

Algum dos nossos leitores estará informado sobre o porquê de ter sido a Terra do Fogo assim chamada, se por ali não havia como acender um tição? E não ser como a Islândia, berçário de vulcões ativos e aterradores? Uma vez, um desses, nome trava-língua, vomitou fumaça a ponto de cancelar os voos da Europa ocidental.

No extremo que antecede o Círculo Antártico, não há fuligem, mas o estrídulo agonizante, teimoso e cruel, zunindo nas árvores, nas cumeeiras das cabanas, ou mesmo sacudindo as vidraças dos rarefeitos resorts. Nós temos balneários. Eles, Bariloche. Nós, Fernando de Noronha. Eles, estampido de geleiras desabando... Mas, belas!

Nós temos Jobim. Eles, Piazzolla. Cada qual com os seus geniais. Os nativos daqueles eternos pagos eram tão primitivos que não sabiam fazer fogo, não por falta de tentativas, mas porque era mesmo impossível, naquela umidade e sob o assovio polar. Aproveitavam o fogo incendiário dos raios, subproduto das tempestades. Revezavam-se em plantões. À noite, desde os navios ancorados, via-se, quando a bruma permitia, o Cruzeiro do Sul, a fulgurante nebulosa a ser nomeada de Magalhães e um colar horizontal de fogueiras, a forma mais bruta da luz de Prometeu.

Os aborígenes assombraram os espanhóis com dois detalhes: a altura e os pés gigantescos – patagones. Daí, o nome desse Estado argentino. Um nativo, alçado a uma das naus, num átimo inimitável, desabalou-se, reaparecendo no convés com uma presa al dente. Traçava nojenta e sanguinolenta ratazana. Um segundo, aprisionado, seria exibido na Espanha, prova testemunhal dos índios do fim do mundo. Porém, o vivente daquelas paragens inclementes não suportou os rigores da embarcação balançante e nauseabunda, morreu. A saga de Magalhães, a primeira volta completa ao mundo, melhor sabê-la com fôlego. Ler, de preferência, algum relato fiel ao diário do escrivão oficial, o italiano Pigafetta. Não era marujo, talvez nem soubesse nadar. Deslocou-se de Gênova a Sevilha. Magalhães recrutava a tripulação, mas alegou não poder dar-se ao luxo de levar inexperientes, ao que o escriba fulminou: “Mas, eu sei escrever. Sem um escrivão, sua epopeia não terá posteridade”. De fato.

Em sentimento (in pectore), estive tantas vezes na Patagônia! Imagino-me, também, na Terra do Fogo. Na Antártida, nem tanto. Aliás, desdenho da grafia Antártica, parece merchandising de cerveja. O Polo Sul é para pouquíssimos. Abnegados cientistas. Engraçado é que com tanta dificuldade de se fazer fogo no gelo, a brasileira Estação Comandante Ferraz pegou fogo. Teve de ser reconstruída quase do zero. Pode uma coisa dessas?

Radicais, mesmo, foram as expedições de Roald Amundsen (1878—1928), o primeiro a fincar uma bandeira no ponto exato (1911). Mas, morreu na volta. Inclusive, os cães. Todos encontrados por um segundão retardatário. Este, colocou uma bandeira mais baixa do que a primeirona, norueguesa. Voltou vice, mas vivo. Também foi o norte-americano Robert Peary (1856—1920) o primeiro ser humano a chegar ao miolo do Polo Norte (1909).

Uma vez, repórter, estava num plantão sonolendo. Eis que chega “uma pauta do Rio” (trabalhava na sucursal de O Globo): entrevistar um casal que fizera um cruzeiro pela Antártida. Eram idosos. Um sonho, conhecer o fim do mundo ao Sul. Já eram veteranos viajantes. Todavia, a aventura polar prometida ia pouco além da cidade mais povoada naquele rumo, Ushuaia. Ou seja, conforto do quentinho, navio e hotéis climatizados. Erudito, ele se utilizava de cenários d’Os Lusíadas para ilustrar paisagens vistas desde uma cabine hermética. Tal montanha remota insinuava a figura sinistra do adamastor, referida por Camões.

Com o correr do tempo, o narrador, aqui, ficou na defasagem e na indagação existencial. Irei, eu, algum dia, aos confins patagões? De cruzeiro, quem sabe. De carro, jamais. Nas poucas vezes que fui motorizado ao Rio Grande do Sul, quase morri: motoristas aloprados, caminhões, carretas... E velozes turistas argentinos. Eles disparam tão logo cruzam a fronteira. As multas daqui não chegam aos seus lares. Tenho amigos e amigas que foram aos glaciários argentinos e chilenos. Contam, e contarão pelo restante da vida os seus deslumbramentos. De viagens, também tenho os meus, mas, não é o caso, noutras ocasiões, talvez.

Hoje, isolado e temente a Deus e às pestes, faço-me de Júlio Verne, mas de um Planeta totalmente descortinado e nem por isso ao meu alcance. Avançada, pois, a hora. Contento-me pouco, mas, grato, à cabine de um cabeça viajante. Quando menos, imagino futuros. Quando mais, remexo um plantel de lembranças e redemoinhos alvoroçados de emoções. Rememorar um romance, um filme, uma saga. Mesmo que seja apenas uma ou outra a tanger corações, como o filme El farol de las Orcas (Direção: Gerardo Olivares, 2015). Corro ao papel. Os papeis oficiais para aquarela se acabaram e é proibido sair. A pandemia nunca foi tão galopante. Muito pior do que uma nevasca lá fora. Serve qualquer uma superfície porosa de celulose, até o verso de um pedaço de embalagem de coador de café. Uma aquarelinha, um postal. E esta crônica, para quem estiver ao meu lado, leitura.