O latim, ou, nem que eu falasse a língua dos anjos

Luiz Martins da Silva –

Não sou propriamente um Gastão (o primo sortudo do Pato Donald) e até hoje não faturei na Mega Sena, mas algumas chances apareceram desde cedo pelo meu caminho, uma delas, aprender a Língua de Deus e ainda ganhar uma bolsa de estudos. Estava eu, ali, pelos nove ou dez anos, quando, um dia, ao voltar da escola, ela [mamãe] me falou: “Você começa, hoje, à tarde, as aulas de latim com o Seu João (o “Seu João Sacristão”).

Àquele tempo, menino não tinha vontade. Era não, quando adulto achava, e, sim, quando adulto já tinha decidido. Fiz, pelo menos, o que me cabia, resmungar. “Pra que isso?” Porque seria bom, explicou. Por religião e por facilidades no colégio. “Não entendi!”.

– Porque vai estar mais perto de Deus e, além disso, vai ganhar uma bolsa de estudos e, assim, ajudar o seu pai nas despesas.

Fui. Eu conhecia o Seu João, mas, à distância, olhando-o lá de baixo, do corpo da Igreja. Ali, frente a frente, eu o achei muito velhinho. E um tanto rouco. Tal como eu ouvira dizer, ele sabia tudo de Igreja. Na primeira aula, nada de latim. Primeiramente, eu tinha de entender umas quantas coisas que, ao final, acabei não entendendo. Eram termos muito estranhos. Eu já desconfiava que os homens, para se aproximarem de Deus, procuram “falar difícil”. Exemplo: eu estava sendo instruído para ser “coroinha”, mas, oficialmente, ia me tornar um acólito.

E passei a compreender, desde muito cedo, que existem três andares básicos de significações. Um, o subsolo das expressões vulgares, a descida ao repertório chulo. O térreo, do tratamento corriqueiro da realidade, mas já com termos aceitáveis nos ambientes marcados pelo decoro, pela decência, mesmo ao se falar das coisas mais chãs, como as do plano fisiológico: micções, evacuações, secreções e outros ões. Havia, ainda, decorei, uma porção de “significados”, mas sem saber, exatamente, o que significavam aquelas palavras ‘difíceis’: Santa Madre, Doutrina Eclesiástica, Infalibilidade Papal etc. “Mas, não se preocupe muito”, ponderou o Seu João: “Leve este missalzinho, praticamente está tudo nele”. O livrinho, de capa preta e páginas blocadas em carmim, guardo-o ainda hoje, lembrança.

Na primeira missa que eu ‘ajudei’, o meu tutor ficou por perto, na supervisão. Fiz confusões, quase desisti. Mas, ele, sempre intervindo e sinalizando que estava tudo bem. Houve risos contidos. O próprio vigário pôs no rosto um misto de gracejo e enjoo. Era muita coisa para mim, eu mesmo fiz este julgamento, muito peso, tanto quanto o peso do missal, ou seja, muitos pesados encargos, cujos códigos estavam escritos numa escrita muito desenhada e, ao que me pareceu, numa caligrafia de leitura dificílima. Soube, depois, tratar-se de “gótico”. Ou seja, além de segredos ditos havia também os mistérios por escrito.

Não somente o missal era pesadão, mas, tanto quanto ele, a estante de madeira sobre a qual ele era aberto. Algumas coisas não faziam muita lógica. Por que o acólito tinha de transportar o missal de um lado para o outro; ora, da esquerda para a direita; ora, de novo, da direita para a esquerda; e tendo de se ajoelhar toda vez que cruzava de um lado para o outro, pois, bem ao centro, havia de se fazer uma genuflexão e uma reverência. Jamais alguém podia passar em frente ao Santíssimo sem se dobrar. Afinal, ali estava, no sacrário, o próprio Espírito Santo.

O Santíssimo, eu já sabia, era uma hóstia grandona que ficava dentro daquela urna lavrada a ouro, dia e noite guarnecida por uma luzinha vermelha, uma espécie de plantão, significando que aquela hóstia, uma vez consagrada, guardava, ali, a própria presença de Deus na Igreja. E esta era a razão da praxe da genuflexão obrigatória. Eu não tinha nada contra, pelo contrário, havia sido pautado no sentido de que tudo ali tinha um procedimento correto e necessário, pois, durante uma cerimônia religiosa, tudo devia ser conduzido com o máximo respeito, por estarmos na presença de Deus.

Eu me avaliei como não tendo chegado nem ao nível do regular, mas, o Seu João garantia que eu tinha ido muito bem. Não me pareceu que ele estivesse sendo verdadeiro. Eu tinha consciência de ter sido vexaminoso e que toda aquela pequena multidão que assistia à missa deveria ter saído comentando: Por que botar um menino de acólito, se ele mal consegue carregar um missal?

A igreja-matriz era muito antiga, mas nem tão antiga para ter aqueles livrões que pareciam vir de mil anos. Certamente, quando aquela igreja fora construída, os missais e outros volumes sagrados teriam vindo de Roma, o lugar mais sagrado e mais antigo e a própria Capital dos assuntos “canônicos”, guardados em latim e em gótico, desde que São Pedro foi convocado por Deus para “edificar” a Igreja de Cristo sobre uma pedra, exatamente onde veio a ser construída a Basílica do Vaticano.

Era muito assunto. E era por isso mesmo que um seminarista tinha de estudar muitos anos até poder ser ordenado padre. Ser ordenado, pertencer a uma Ordem. E aí estaria um peso ainda maior: a virgindade, o celibato, uma entrega exclusiva e absoluta às obrigações eclesiásticas. Obediência, Pobreza e Castidade. Eram os votos, ou seja, compromissos, juramentos etc. Eu ia, aos poucos, me acostumando ao palavreado e também à noção do quanto a igreja pedia em renúncia. Padre não podia se casar. Freira não podia se casar, a não ser com Cristo, usavam até aliança. Engraçado é que embora uma criança tenha muitos devaneios, muitos dos “chamados” da “vida religiosa” me parecerem, já àquela época, absurdos. E, sobretudo, muita inculcação de que as portas do Céu não se abrem facilmente, a não ser para os mártires e aqueles que conseguissem ‘se guardar’ absolutamente puros. Havia um culto aos seres imaculados, ou seja, sem manchas.

Lembro-me que em um dos folhetos de catecismo preparatórios da Primeira Comunhão havia desenhos de três corações: um, totalmente limpo; um segundo, preto pela metade; e um terceiro, totalmente preto. Correspondiam, respectivamente, às situações do pecador: sem pecado, pecado venial e pecado mortal. E se uma pessoa morresse em situação de pecado, iria para o Purgatório, se com pecado venial; e para o Inferno, se o coração estivesse tomado por um ou mais pecados mortais.

Era a morte dupla. A pessoa morria e depois a alma também morria e passaria a sofrer no Inferno, os mais cruéis castigos, por toda a Eternidade. Praticamente, não haveria outro destino aos pecadores, senão o do sofrimento. Purificar-se pelo sofrimento ou por uma vida de privações, dava no mesmo. Caso contrário, sofrimento eterno. Era muito sofrimento. E mesmo para se ganhar uma bolsa de estudos havia que pegar no pesado, carregar livros sagrados, decorar a língua dos rituais sagrados, jejuar antes das comunhões... E, a prosseguir na “vida religiosa”, fazer os votos de Obediência, Pobreza e Castidade.

AS NOVENAS. Se ajudar uma missa já me parecera um conjunto interminável de gestos e rituais sagrados e complexos, havia ainda, como parte do aprendizado, a parte noturna: ajudar nas novenas, rituais mais curtos do que uma missa, mas com uma tarefa igualmente importante, mas igualmente delicada. Andar de um lado para outro incensando o altar e o “celebrante” com um turíbulo cheio de brasas e incenso, de maneira a espargir muita fumaça por todo o ambiente. Desde então, compreendi que os momentos sagrados precisam de bruma. Talvez, uma reminiscência de quando Deus aparecia para os profetas, envolto em nuvem, nevoeiro, neblina, uma cortina, de fumaça que fosse e até uns trovões. Estes, substituídos por toques de campainha. Parecia-me, àquela etapa de formação da minha consciência, que os homens não tinham autorização para encarar Deus frente a frente, nem mesmo os profetas, nem mesmo os santos. Daí, a ideia de um Deus envolto em nevoeiros.

Foi um fiasco. De longe, quando o sacristão pegava o turíbulo, incensava o altar, o celebrante, o ambiente... Era tudo muito leve e fácil, balançar aquele aparelhinho, todo de prata, e espalhar umas boas baforadas daquela fumaça de aroma bastante agradável, dando batidinhas do bojo nas três correntes de sustentação. Na prática, porém, botem complicações naquilo. Primeiramente, o preparo, que era feito antes da cerimônia, na Sacristia, aquela repartição da igreja que fica na parte anterior ao Altar-Mor. Para que tudo estivesse nos conformes quando da entrada para a cerimônia, momento em que todos os fieis se levantavam.

Não me lembro bem de onde vinham as brasas, quando cheguei elas já tinham sido providenciadas, estavam dentro de um balde de metal, pesado. Havia uma colher imensa que era usada para a retirada de brasas bem escolhidas, que eram colocadas no turíbulo. Somente aí já foi uma complicação, carregar aquele instrumento quente e dispersando fagulhas. De cara, veio um medo de alguma faísca se espalhar, ir parar em cima de tanto tapete e eu acabar botando fogo na igreja.

Sempre me encorajando, Seu João Sacristão me dizia que nas primeiras vezes as coisas pareciam complicadas, mas, aos poucos, iriam se descomplicar. Eu tinha muito medo de que estivessem me preparando não somente para ser um acólito, ou seja, mero ajudante, mas para vir a substituí-lo. Eu era cristão, católico e até bem devoto, mas, daí vir a ser um homem que mais vivia dentro da igreja do que junto da própria família, era demais para as minhas pretensões. E eu, àquela altura, tão principiante da vida, ainda queria brincar mais um pouco, mesmo que não viesse a ser um bom jogador de futebol.

Foi um fiasco, volto a lembrar. O ritual com o turíbulo não consistia em tão somente pegar aquele incensador e andar de um lado para o outro incensando altar, celebrante, ambiente... Havia um momento crucial, que era levantar a parte de cima do turíbulo para que o celebrante colocasse algumas pedras do incenso, que eram uns nódulos de cera, bem duros, sobre as brasas. E era isto, precisamente, o segredo do aroma gostoso da fumaça das novenas. Acontece que, uma vez o incenso nas brasas, era necessário agitá-lo bastante para que as bolotas ficassem incandescentes. Uma vez braseiro bem formado e fumaça em boa dose, havia um rapapé bem especial, que era chegar bem de frente para o celebrante e balançar o turíbulo, com o antebraço dobrado, distribuir bastante fumaça e passar para ele, que faria o mesmo, mas em direção a toda a igreja, e em formato de cruz.

Não deu certo, eu procurava encontrar os domínios que, à distância, me pareciam tão simples. Que nada. Nada de acertar, ou mesmo de aguentar o peso do incensário. Atrapalhei-me com as correntes, brasas, bolotas, fumaceira... Não havia, nele, a leveza que eu contemplava, quando de longe, quando tudo parecia leve e diáfano. O padre balançou a cabeça e olhou para o sacristão com uma testa bem franzida. O velho saiu da retaguarda, pegou do turíbulo, e eu fiquei com cara de tacho, como se dizia, reprovado numa prova elementar, de simples ajudante de novena. Mas, pelo menos não viria a ser sacristão. Mas, e a bolsa de estudos? E como iria ajudar o meu pai a tirar um peso das costas?

Mesmo o padre já era bem velho. Havia os seminaristas, mas, esses, somente apareciam nas férias, quando vinham de Fortaleza. Eles, sim, embora jovens, eram bem desembaraçados naquelas ritualísticas. Já vinham bem treinados. Mas, ali, em igreja de sertão, eram dois velhos, padre e sacristão, em tentativas de encontrar algum menino de Cruzada Eucarística Infantil, com pais precisando de adiantar algum filho em serventias dignas de permuta com uma bolsa de estudos no ginásio paroquial.

O sacristão, bem idoso que estava, não parava de me incentivar e de me convencer que tudo era uma questão de prática e que, no início, era assim, mesmo; que ele próprio havia penado e temido não dar conta do recado; recado que, ao fim e ao cabo, se demonstraria ser bem fácil, questão de tempo e paciência. E paciência era o que aquele senhor rouco tinha, e bastante.

As aulas de latim prosseguiram e eu até achei muito interessante o convívio com uma língua que, além de pronúncia muito bonita, era a língua de se falar com Deus. A língua dos mistérios que serviam de ligação entre a Santa Igreja Católica Apostólica Romana e o acesso às portas celestiais.

Aquilo não era para qualquer um, muito pelo contrário, eu estava ali porque era um escolhido, puro e santificado, a ponto de estar à altura e de par em par, por exemplo, como o meu próprio Anjo da Guarda, todo branco, de túnica e asas grandes e bem alvas, invisível, porém, dia e noite, ao meu lado e cuidando para que eu não resvalasse para o mundo das baixezas e do linguajar chulo da molecada das ruas. Eles, que praticamente só dominavam o vocabulário vulgar, ofensivo e indigno dos afazeres santificados.

AS BADALADAS. Ocorre que mais uma etapa pesarosa, literalmente pesada, pois atrelada a muito peso em chumbo, ainda estava por vir. E se um missal antigo e um turíbulo de prata me pareciam pesados e embaraçosos, imaginem o que um sino de igreja não veio a ser para uma criança. E nem hoje, tantas décadas depois, eu consigo imaginar como que, a despeito de tanta necessidade de formar um acólito, como é que dois homens, tão idosos e tão experientes nos misteres e rotinas eclesiásticas, não atinavam que destinavam tarefas pesadas demais para se permutarem por uma simples bolsa de estudo. Aliás, eu cresci e vim a disputar bolsas de estudo ao longo de uma vida acadêmica, sempre com a ideia de que dentro de tais bolsas havia peso, sacrifícios ou peso em chumbo mesmo.

Não sei como o Seu João considerou que eu tinha ido bem nas primeiras etapas dos rituais e ainda muito melhor no latim, embora fosse muito mais decorebas do que ter ciência das frases de respostas aos dizeres do celebrante. Havia tradução do missalzinho, mas o importante era que houvesse alguém para responder. E sendo as respostas em latim, ganhavam por isso uma importância especial, superior, grandiosa em sentido. Responder em português não tinha o mesmo efeito.

Bem mais tarde, vim a saber que aquele latim não era propriamente o latim original, nem da Roma Antiga e nem o dos apóstolos Pedro e Paulo, mas, um latim bem domesticado pelo tempo, mas ainda guardado pela Igreja e bem acalorado com um sotaque italiano, o chamado “latim de padre”, como um dia me referiu um erudito da Academia Brasileira de Letras, que vim a conhecer. Ao trocarmos provérbios em latim, eu riu do meu latim, dizendo que eu tinha pronúncia de igreja.

Certamente para eu não desanimar. Tudo me era transmitido como algo simples e com muita simplicidade. Talvez, para ele, que tinha por perto de uns 60 anos de sacristia. E foi nesta modulação que o Seu João me passou a etapa definitiva que me levou a comentar em casa. “Olhem, se vocês acham que está fácil ganhar a tal da bolsa de estudos, saibam que dentro dela tem muito chumbo. E, desta vez, eu desafio quem é aqui, de casa, que dá conta de aluir uma só badalada para que seja ouvida em toda a cidade”. Como assim?

Simples, assim, explicou o Sacristão. Além de “responder a missa em latim, você ficará com a tarefa de tocar as três chamadas para a missa das seis no sino da igreja-matriz. A primeira chamada é às 5 e meia; a segunda as 5 e 45; e, a terceira, exatamente às 6. Aí, você se apressa e se apresenta, já no altar, para ajudar à Santa Missa.

Dessa vez, houve reclamações provenientes de toda a cidade. Pessoas, acostumadas ao longo de uma vida de bons costumes a se regular pelas badaladas do sino da igreja-matriz, indo ou não à missa, se confundiram, se atrasaram, perderam compromissos e acharam que alguma coisa havia de errado no mundo, nas estrelas, na madrugada, no sol, na manhã e em mais alguma rotina do dia a dia. Simplesmente, não ouviram bem, ou nem ouviram, as três chamadas para a missa das seis. Mas, vejam se conseguem me entender.

Uma das tarefas do coroinha era saber a sequência de uma quantidade enorme de peças dos paramentos de um padre para rezar uma missa. Aquilo era muito estranho. Ele já estava bem vestido, alinhado, de batinha bem limpa, sapatos bem polidos, careca bem lisa e cheirando a colônia. Por que tinha, e ainda mais no calor do sertão, de acrescentar umas quantas camadas de roupas, grossas e cheias de brocados? O coroinha, ou melhor, o acólito, tinha de ir entregando, uma a uma, na sequência correta, as vestimentas. E mais uns quantos acessórios.

Por cima da batina ia a alva, ou seja, uma camisola branca e bem fina, rendada e amarrada à cintura por um imenso e grosso cordão branco, mais parecido com uma corda. Depois, não me lembro de tudo, ia a estola; e mais isso e mais aquilo e, por fim, a casula, isto é, uma espécie de grande e pesado paletó que era colocado por meio de uma grande abertura pelo pescoço, cobrindo os ombros. A sucessão das peças era colocada em gavetões pesados, na véspera, por uma senhora, que era lavadeira, passadeira e arrumadeira das vestes dos celebrantes. Ao término da missa, tudo o que tinha sido posto sobre a batina tinha de ser retirado de volta, peça por peça, dobradas e colocadas de volta nos gavetões, gavetões de madeira maciça, bem pesados.

Eu não podia estar ao mesmo tempo na entrega das peças do vestuário para a Santa Missa e correr de 15 em 15 minutos para puxar o badalo do sino da igreja. O sino era com o sacristão. Acontece que, não me vem à memória o porquê, ele não ia mais tocar as chamadas. Eu, sim, estava escalado para tal. Até me avisaram que eu teria de puxar bem firme a corda para as batidas saírem bem sonoras e serem ouvidas pelos fieis. Os que moravam mais longe tinham de ouvir bem a chamada das 5h30. Os que moravam mais perto, tinham de ouvir bem a chamada das 5h45. E os que moravam bem perto da igreja, tinham de ouvir bem a chamada das seis em ponto, questão de um minuto para estarem entrando pela entrada principal da igreja ou tomando café para ir às obrigações cívicas, comuns.

Fiasco total. Como é que os meninos, de molecagem e pecado venial, vez por outra passavam pela igreja e se aproveitando de estar sem vivalma batiam o sino e saíam correndo? E como é que eu não dava conta de dar uma única badalada firme e sonora? As batidas que dava saíam muito fraquinhas e sem a cadência adequada. Então, eu resolvi me pendurar de corpo inteiro em cada badalada. Foi uma boa ideia, não fosse o descompasso. Saía uma que outra badalada forte, entremeada de uns repiques levinhos. Definitivamente, puxar sino de igreja era coisa para aqueles carregadores de sacas na estação do trem. Um sujeito daqueles pegava uma saca de 20 quilos, jogava-a sobre a cabeça e saía trotando até um vagão de carga. Atirava-a de modo a cair certinha, uma por cima da outra, voltava e repetia o fornecimento, parece que ganhavam por hora.

A BOLSA. O vigário, distraído na sacristia e no vestir dos paramentos não se deu conta das batidas fracotas. Eu voltei às seis horas e pouquinho, ele já estava vestido e o acompanhei. Ajudei-o no ritual da Santa Missa e eu já sabia de cor todas as respostas no devido latinorum. Fui para casa contente, a despeito do jejum. Sim, todas aquelas tarefas eu as fazia em jejum, pois uma vida santa requeria do cristão comungar diariamente e não se comia antes de engolir a hóstia consagrada. Achei que, finalmente, estava preparado para ser admitido como acólito e ganhar a bendita bolsa de estudos. Aconteceu, porém, que, de tarde, o Seu João apareceu lá em casa, para conversar com a minha mãe.

– Infelizmente – disse ele à minha mãe –, não vai dar certo, o menino é muito novo e muito franzino, foi bem nas duas primeiras etapas, mas não tem força para bater as três chamadas no sino da igreja.

Minha mãe era muito positiva. E respondeu na bucha.

– Pois, deixe estar. Ficará sem a bolsa. Quando o senhor me procurou foi por ele ser da Cruzada Eucarística Infantil, por saber ler bem, ser frequentador da missa, por estarem precisando treinar um coroinha. Agora, ele já é coroinha, noveneiro, batedor de sino e, parece, até ajudante de vestir padre, ou seja, o senhor está precisando mesmo é de um sacristão completo. O senhor me desculpe a pergunta, como sacristão o senhor começou com que idade?

O homem guaguejou, pigarreou, ficou mais rouco ainda do que era e saiu-se com esta:

– Compreendo, vou falar com o vigário.

Falou, voltou e ficou acertado, assim:

– Está combinado. O menino responde bem à missa em latim e vai ficar somente com esta parte. Vamos procurar uma outra pessoa para as outras tarefas. Pode ficar tranquila. A bolsa de estudos está garantida. Ele é um menino de ouro.

De ouro, não sei. E não fui bem nos votos de Obediência, Pobreza e Castidade. Pecados, ufa! Que Deus me perdoe por eles e bote na minha contabilidade uns haveres para além da bolsa, tantas missas que eu ajudei. O latim tornou-se um gosto, mas, com o tempo, esquecido, da mesma maneira como virou mesmo língua morta, não se fala mais latim nem em Roma, a não ser em raras ocasiões, na Santa Sé. Os livrões pesados foram aposentados, o gótico ficou para cerimônias muito distintas, ordenações, beatificações, santificações e outros ões. A bolsa, por fim, ficou leve. De vez em quando, quando tomo uma taça de vinho do Porto, associo o aroma aos tempos em que o acólito tinha de levar as galhetas com a água e o vinho para que o padre cumprisse o mister da repetição da transubstanciação do vinho no sangue de Cristo.

Ah! Escrever esta crônica, ainda bem, tive este prazer de descobrir que vem desse tempo esse capricho de apreciar um vinho do Porto. E com que alegria vim a conhecer as adegas de Vila Nova de Gaia e provar, tacinha por tacinha, tantas variedades do mesmo.