Bêbado triste - fonte: BlogArteurbe
Duas pifas no fiado. Ou, perde-se o freguês, desde que ele tenha escolhido ser mais feliz

Luiz Martins da Silva –

Àquela tarde, o homem chegou que chegou, tava carregado. Nada do proseador de sempre. Então, o freguês, o Dono e a Dona ficaram se entendendo por sinais.

A cachaça veio ao balcão. Bebeu de um gole a primeira, fez uma careta e não de paladar, foi de sofrimento.

Não encarou ninguém, estirou foi o beiço, flechado no chão, os olhos também.

Dono e Dona da bodega se entreolharam, quando ela deu as caras, com uma nova rodada de porções de linguiça no palito.

Num repuxo de rugas, o fiel cliente gesticulou por mais uma.

E seguiram-se mais uma e mais outra e, assim, por diante.

Em geral, entre uma e outra, era pausa, era papo, anedota, trovinha... Ou, se a pá era virada, os resmungos sobre fracassos, loterias, bingo, jogo do bicho... Ainda iria bamburrar, nem que tivesse de ir a um garimpo. Chegara a ganhar 140 reais numa quadra, besteira.

Mudo, chegou; mudou ficou. Sequer olhou para o tira-gosto.

No bloquinho dos fiados ficara a pendura de dez branquinhas.

Voltou na tarde seguinte. Mas, ainda pior. Tava “cagado e cuspido” o peão com suor tresnoitado.

Muito atinada, a Dona cochichou ao Dono, quando ele foi ter com ela um momento no reservado da cozinha:

– O freguês tá com sujeira de quem dormiu na rua. A barba atrasada, de espetar mosquito; a inhaca, uma mistura de birita com azedume.

– Pra mim ele também não disse nem um oi. Não se deu ao trabalho de pedir, mas eu já fui logo com o copinho oficial. E ele só repuxando o queixo para cima, mandando uma atrás da outra e batendo com o vidro na madeira.

Silêncio. Era silêncio de se ouvir mosca voando, quebrado apenas pelo faceiro estampido da rolha e o gargolejo da serventia líquida.

Conversa não queria? Pois, conversa não teria. A experiência do casal rezava: nessas horas não se pergunta. Balcão pode ser lugar de bafo, mas, se não quiserem, não se puxa desabafo. Ainda mais daquele coração de pedra, orgulho de vergalhão.

Que vexame amargurava o contador de lorotas? Antes, piadas para todos os gostos. Era piada de português, de papagaio, doido, corno e, que ironia, até de bêbado.

Alguma coisa acabara com o riso do freguês bonachão e, pelo visto, com a altivez também.

Já ia, de novo, lá pela décima, quando uma aparição tomou de espanto o recinto. Por um momento, dava pra escutar ponteiro de relógio de pulso.

Uma mulher vultosa, pisando em plumas. Ele não atinou a sorrateira presença.

De mansinho, ela o abraçou pelas costas. Pego de surpresa, ele a repeliu com um safanão. Então, ela mostrou a que vinha. Carregou na ignorância e o imobilizou com um abraço de onça. Ele tentou refugar, mas não teve saída.

Agarrado pelo amor de sua vida, o ébrio se rendeu. Ela o arrastou como um saco de batatas. Ele não mais resistiu. E foi soluçando como uma criança desconsolada. A caminho de casa, entregaram-se às pazes.

Dono e Dona foram à calçada e ficaram olhando-os até eles se perderem de vista no braseiro da tarde.

Por alguma vergonha, ele não mais apareceu.

– E sabe como é que é, né? – Lamuriou-se o Dono ao contar o caso a um outro assíduo frequentador.

– Dívida de porre é muito complicada de se ir cobrar.