Luiz Martins: “Minha mãe casou-se aos 14 anos, padrão de uma época em que o matrimônio nas áreas rurais e patriarcais era mais um assunto das famílias do que da autonomia pessoal.”
Cem anos. Ou, uma crônica do tempo das matriarcas

Luiz Martins da Silva –

Há um ano, quatro dias para fazer 101 anos, ela passou a fazer parte do panteão dos antepassados, os mais próximos, a quem devemos memória e reverência. Minha mãe veio ao mundo para ser mãe. Casou-se aos 14 anos, padrão de uma época em que o matrimônio nas áreas rurais e patriarcais era mais um assunto das famílias do que da autonomia pessoal.

Ela e meu pai tiveram dez filhos (sem contar um aborto espontâneo), num contexto em que se tinha o tanto de filhos que Deus quisesse e a parteira praticamente fazia parte da família. Os partos eram naturais e os resguardos eram bem guardados, antes e depois dos nascimentos.

Filhos eram uma riqueza natural e cultural: braços para a lavoura e garantia de reposição em casos de perdas. Os índices de mortalidade eram altos e as vacinas eram fabricadas pelo próprio organismo, exposto sem o que fazer aos ataques dos vírus, menos disseminados, pois a população brasileira era muito menor e bem rarefeita.

Uma família de sertanejos, com certeza, e ainda o seríamos até os tetranetos do casal não fossem dois fenômenos atrelados, a seca e a migração. A saúde sempre foi um forte, não fosse um terceiro fator, posteriormente descoberto: tumores decorrentes do uso de agrotóxicos, à época tidos realmente como "defensivos", tanto na colheita quanto na conservação, em tambores. Foi a hipótese para um câncer de intestino que levou meu pai 30 anos antes dela. Ela venceu outros. E este locutor que vos fala, também.

Dono da vida e da morte, sempre Deus. Família católica, mas, como todos os do sertão, afeitos a crenças, simpatias e superstições. Em casa, até hoje, quem acha as coisas é São Longuinho. Há santos para todo tipo de pedido de socorro e no cotidiano quem está sempre na oitiva é o nosso Anjo da Guarda. Parte da religiosidade era o respeito aos pais, representantes de Deus na Terra.

Hoje, com as cosmogonias e cosmologias mais ampliadas, inclusive pela socialização secundária – instituições, diálogos culturais, interreligiosos e até a televisão –, somos mais abertos a um sem número de outras devoções, mas também de paganismos, como as tarifas e prestações que nos apresentam os impostos e as tentações do consumo. Neste contexto aprendi, por ecumenismo, que devemos render muita gratidão e boa memória aos nossos mortos. A esta altura, em que acabo de fazer 70 anos, temos o nosso cemitério sagrado, neste pedação de terra chamado coração. Aos meus pais, meu muito obrigado.

No momento em que redijo estas linhas, vem de oferta um link para uma matéria que informa: Via Láctea pode ter 300 milhões de planetas habitáveis. Não duvido. Por perto ou em algum deles, papai e mamãe nos acenam, com o carinho para com aqueles que, para eles, foram dados por Deus. E nós, no contrafluxo, também agradecemos. A Deus e aos seus representantes neste planetinha, ainda habitável, na periferia da galáxia.

Éramos doze

Hoje, primeiro dia
De um estranho sentimento.
Órfãos de pai e mãe,
Uma virada no tempo.

Saga, bravura, esperança:
Retirantes brasileiros.
Desbravadores do mundo,
Destinos de sertanejos.

Um cordel ao nosso modo,
Juntos, porém desgarrados.
Nem sempre o dia seguinte
Era de cumprir o traçado.

Sebastião, Dona Maria
E uma dezena de filhos.
Ele, há muito, era saudade.
Ela, ontem, aos 100 de idade.

Não nos deixaram sozinhos.
Muito, pelo contrário.
Netos, bisnetos, vizinhos
E tudo o que é mais sagrado.

(LMS)