Luiz Martins: “Cantor e cacique me atalharam, fecharam a minha passagem: Tem de pagar! Gravou, tem de pagar!” Tive que deixar meu gravador com eles.
Como virei produtor musical. Detalhe, sem querer

Luiz Martins da Silva –

Um parente costumava dizer: Não precisa caçar confusão, elas aparecem sem ser convidadas.

Tive a comprovação do adágio por várias vezes. Mas, uma delas foi punk. Por pouco, não deu em pancadaria. E de borduna. Pois, vamos ao caso. Foi numa época em que fazia reportagens.

Recebera uma pauta para ir longe cobrir uma confusão, ou melhor, um combo, várias num pacote.

E quando é que eu imaginava que também seria metido numa delas?

Aquele lugar era um paradeiro de confusões. Mas, vou ficar numa. Do nada, quando percebi, estava emaranhado.

Portanto, não fora àquela terra buscar confusão, ou melhor, fui, mas, para entender o que se passava ali e que andava resultando em matanças: índios, fazendeiros, madeireiros e garimpeiros. Escaramuças e emboscadas.

Mal pisei em solo indígena e um índio, como se diz, grudou no meu pé. Queria por que queria que eu o gravasse, no meu gravador, o que ele cantava.

Que tropeço! Eu, com pressa, e o índio atrás de mim, apontando para o gravador e cantando uma canção que, ao gosto dele, deveria ser algum importante etnohit. Fosse eu um etnógrafo, um produtor de vídeos, de documentários... Maravilha!

O índio cantava no idioma nativo, eu não entendia uma única palavra. A melodia era d’um tipo atonal, variando de um tom para um semitom e voltando ao mesmíssimo tom inicial. A interpretação era um lento ro-rei-ro... rei! E repetia. E repetia! Em resumo, uma triste latomia. Talvez, um lamento ritualístico.

Tentei contextualizar a minha situação, de jornalista em trabalho, pouco tempo, não me levasse a mal, mas pareceu-me não ter noção do que eu falava. Ou, não queria saber do que eu falava. Mesmo assim, esforcei-me, gesticulei, fiz o possível para deixar claro que eu não era o tipo de pessoa à procura de exotismos e muito menos de novos talentos para o show business. Queria, sim, encontrar o chefe dele e alguma fonte que me ajudasse a averiguar as denúncias em torno de grilagem de terras, garimpos, assassinatos, coisas nada leves. Mas, o danado do índio não me largou.

Diante de tanta insistência, e até para entretê-lo, o jeito foi ligar o gravador e seguir adiante. E ele, atrás, na cantiga. Houvesse testemunhas, eu me sentiria ridículo. Eu, quase correndo, e um índio atrás, cantando.

– Chefe! Chefe! Onde...? –

– Lá!

Enfim, ele me entendera, numa palavra tão pequena, mas tão importante.

Antes que eu me apresentasse, jornalista, informações, confusão, crimes... O índio cantor apressou-se e, na língua deles, apontava para mim e para o gravador.

– Paga!

– Pagar o que?

– Pagar a gravação.

– Mas, eu não pedi para gravar nada!

– Gravou, paga! Direito autoral.

Eu já ouvira falar de Eugène Ionescu, um romeno, aquele do Teatro do Absurdo. Mas aposto como aquela situação seria mais radical do que as de A cantora careca, onde é inútil tentar entender, pois o que se evita é exatamente a produção de qualquer sentido.

Você, leitor, pensará que adiantou alguma coisa eu falar com o chefe (ou seria cacique?), que eu não firmara nenhum contrato com aquele cantor; que eu não estava à cata de talentos musicais, que eu não...

– Gravou pagou. Advogado branco falou que é assim. Tem que pagar.

Até então, inútil puxar o assunto para as confusões que haviam resultado em mortes...

– Nada a declarar!

Indignado, bradei:

– Como nada a declarar? Você é o chefe, cacique, maioral...!

– Declaração, só na presença do advogado.

– Cadê o advogado?

– Foi pra cidade.

Fiz sinal que ia embora. Pra que! Cantor e cacique me atalharam, fecharam a minha passagem. O cantor reclamando, apontando para o gravador. O cacique, repetindo, feito disco de vinil arranhado:

– Tem de pagar! Gravou, tem de pagar!

Tal como na sinuca, às vezes a gente tem de bolar uma saída, algo tão insólito quanto encontrar a solução de um problema de geometria descritiva para sair de uma enrascada, encaçapar a bola sete e partir para o alívio.

– Não posso pagar, o dinheiro não é meu, é do jornal. Então, eu pago com o gravador, que já tem a música do cantor, pode ouvir a canção dele, pode gravar o que ele quiser; cobrar o quanto ele quiser; de quem ele quiser; e de quem o senhor cacique mandar pagar.

Na língua deles, o chefe-cacique-maioral deu a última palavra, para resolver a encrenca. Uma palavra que não soube qual. Algo monossilábico, mas suficiente.

– Negócio fechado!

O cantor ficou com o gravador e o chefe chamou um subordinado que sabia a minha língua para seguir comigo e eu obter as informações de que precisava.

Culpa do gravador – deduzi. Ou, pelo menos nunca mais viajei com um deles.

Hoje, conservo poucas superstições. Uma delas é não viajar com gravador. E, como reforço de que estou certo, coleciono histórias em que o gravador foi a causa de desentendimentos. Ou o gravador falhou, deixou o profissional na mão, ou foi o estopim de alguma confusão.

E não é sem motivos de as gravações de rolos políticos, policiais, memes etc serem feitas às escondidas. Se o gravador estiver à vista, confusão à vista. Já soube até de casos em que o interessado na gravação leva um gravador ostensivo, mas que não é ligado, e um outro, oculto, mas ligado.

Por via das dúvidas, não viajo mais com gravador. Papo encerrado.