(Ilustração: Magritte - In Lanners, Edi. “O livro das ilusões”. São Paulo, Ediouro, 1982)
Micos. Um dia você vai ter os seus. E não serão dourados

Luiz Martins da Silva –

Morro de sem graceza quando dou foras. Só que, às vezes, a boca não segura a língua. Mancadas, muitas. E para cada uma delas ainda conservo o rubor. O chato é que a memória funciona muito bem para essas coisas, não há como apagá-las. Vexame a gente nunca esquece. Já constatei que pessoas envolvidas em nossos tropeços até podem deletá-los. Nós, não. Uma vez, caí na bobagem de reencontrar uma delas e requentar o pedido de desculpas. Pra quê? Fui repreendido, assim:

– Poxa! Pra que lembrar? Eu tinha esquecido!

Às vezes, a inteligência de alguns parentes some de uma hora para outra. Numa ocasião, um deles me acompanhava e o ambiente era uma dessas lotadas salas de espera de consultas médicas e a enfadonha impaciência de conferir o andamento das senhas. De repente, emerge de um corredor um velho amigo, àquela altura um amigo realmente velho. Cumprimentou-me animadamente e eu o apresentei ao parente que estava comigo. Olhe o resultado:

– Duplo prazer em conhecê-lo. Primeiramente, eu sempre quis conhecê-lo, o Luiz falava muito em você. O segundo é vê-lo são e forte, pois ele me disse que você tinha falecido.

Que mal estar!  E por mais que eu dissesse que eu nunca tinha dito aquilo, o meu parente me desmentia. “Falou, sim, você até me disse que havia muita gente no enterro!”. O velho amigo, então, se despediu com esta:

– Ele não mentiu, meu caro. Eu morri mesmo, foi no ano passado. Mas, eu não me conformei e vim aqui tomar satisfações com o incompetente do médico que fez a minha cirurgia.

Não dou sorte mesmo em relação a contagem de vivos e mortos. Velhos e afastados amigos têm o péssimo hábito de, em reencontros, fazer balanços de quem foi e quem não foi ‘desta para melhor’. Um colega de faculdade me encontrou num evento e após o mesmo pôs-se a ‘atualizar o caderninho’: Sabe a fulana? Continua bonitona, mesmo já sendo sendo. Sabe o siclano? Ouvi dizer que está com Alzheimer. Soube que a beltrana morreu?

Caramba! Não sabia da morte de uma amiga. Ela, de fato, tinha uma saúde debilitada. Algum tempo depois, o impossível aconteceu: eu a vi. E como para me certificar de que eu não me tornara vidente, fui até a minha querida colega de faculdade:

– Que bom vê-la! Não vou dizer o nome do fofoqueiro, mas um dos nossos colegas me disse que você tinha morrido.

– Ela morreu mesmo. Você está me confundindo com a minha irmã.

Eu não sabia que a minha amiga e colega de tempos acadêmicos tinha uma irmã gêmea.

A propósito de reencontros, não comente mudanças físicas. Cabelos brancos, a roupa que ficou bem, acessórios que... Diferenças do tipo se a pessoa está mais magra ou mais gorda, jamais. Qualquer que seja a impressão, o melhor é não comentar, nem mesmo como elogio. Uma vez reencontrei uma amiga de muitas primaveras mas tantas sem vê-la, bateu-me a sem noção de elogiar a ‘nova gravidez”. Que maravilha! Menino ou menina?

 – É desleixo, mesmo! – e eu fiquei para trás, feito estátua, mudo. Só depois de um tempão é que me lembrei de respirar.

A pior ressaca é a moral. De bebida, em 24 horas vai embora. Mas, as circunstâncias que marcaram um porre podem se tornar inesquecíveis. Numa roda de bestas, um deles resolveu apresentar uma garrafa de arak. Não cuidei o teor etílico. Como era de anis, docinha, mandei ver. Efeito instantâneo. Não tive chance nem de sair correndo. Chamei o “juca” ali mesmo e com a sensação de que não sobreviveria. De volta à vida, me vi abestado, avexado e sozinho com uma conta na mão. Dia seguinte, vergonha da própria sombra.

Num outro país, supostamente menos desenvolvido do que o ‘nosso’, pedi uma lista telefônica na recepção de um hotel. Veio. E era tão grande que parecia ali estarem listadas todos os habitantes daquela nação. Precisava de três mãos para gerenciar aquela maçaroca e mais uma caneta para anotar. Como se fechava teimosamente, marquei com um minúsculo e delgado vinco a página encontrada. Para quê? O balconista me acertou uma: “Que mala costumbre, que tienes vós!”.

Ao retornar de uma outra terra distante, cheguei muito cedo ao aeroporto. Como tinha tempo de sobra, resolvi conhecer algum prato exótico. Por curiosidade, escolhi uma comida à moda tártara. Não demorou, veio uma pratada de carne crua com um tempero punk. Não desceu. Pedi a conta e me desculpei, dizendo que me enganara com o horário de voo.

No México, de tanto ver placas de “Hay burritos”, não resisti. Para quebrar o gelo, brinquei: “Carne de burro, né?” Não levou nem dois segundos para eu receber a chapuletada:

– Si!

E em alto e bom tom, para que outros presentes também ouvissem, veio o esclarecimento: “Tanto quanto hot dog é carne de cachorro”.

Sempre desconfiei que não vim ao mundo com autorização para estrupícios. É tomar parte com o ladino e lá vem porrada. Certa vez, estava com pressa e estacionei fora da norma. ‘Só ia ali, rapidinho’. Mais veloz foi a notificação afixada sob o limpador de para-brisa. Guardas são onipresentes ou têm mania de nos pegarem na curva. “Estou indo levar estas senhoras para um enterro, em cima da hora”. Era verdade, mas, não colou. Além de autuado, uma liçãozinha: “Estivesse socorrendo um vivo, dava para entender...”

Joguem verde e eu despenco de maduro. Pelo menos, não caio em conto do bilhete premiado, mas já tentaram. Por samaritano, embarquei em várias ciladas. Num semáforo, aquela história de me ajude a inteirar um quilo de arroz. Por acaso, tive de voltar ao mesmo local. E ali por perto, estava o cara de pau, numa roda, secando uma garrafa de cana com outros.

Doutra feita, era Carnaval, socorri dois acidentados, ambos, esvaindo-se em sangue. Bêbado pesa um horror. Com muito esforço, coloquei os dois dentro do meu carro. Rumei para um pronto socorro. No caminho, acordaram: “Tá nos sequestrando, filho da... Cadê o nosso carro?!” E foram me xingando até o destino. E os bafos? O banco traseiro, imundo de sangue e terra. Lá chegando, mais confusão e, prontamente, o policial do plantão me enquadrou: “Identidade, dados pessoais... Vai ser testemunha”.

Certa ocasião, viagem enfadonha, nas poltronas vizinhas dois jovens árabes. Puxei assunto: “Bom é no país de vocês, podem ter várias mulheres...”. Pelo olhar de um deles, murchei na hora. Decidi ir ao banheiro, mas, antes de desatar o cinto de segurança, ouvi: “Todas legítimas”.

Numa festa, reconheci a mulher de um amigo, a quem me referi, como se isso fosse uma boa referência. Risinho grosseiro, ela me ferroou: “Que pena, achei que era uma cantada”. Não sabia que estavam separados e brigados. E, na realidade, ela me julgou um mau caráter oportunista, daí a ironia.

Bem antes do fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) um amigo voltara de uma delas e eu, ansioso por ouvir o depoimento dele, fomos tomar um café. Ele aceitou de bom grado, pois estava mesmo a fim de se inteirar das coisas por aqui. Em dado momento, passei-lhe a palavra, mas já adiantando a curiosidade sobre o que julgava ter sido o maior desafio para ele, o frio. Porém, o mais difícil, relatou, foi a saudade. E como fazia para suportar? A resposta foi bem desalentadora:

– De vez em quando, os poucos brasileiros que estudavam na minha universidade se reuniam. Então, a gente botava uns discos de música norte-americana.

Continuo bom moço. E, quase um cacoete, alguns conselhos. Deparando-se com alguma celebridade ‘amiga’, não se adiante em cumprimentos, ceda a primazia. E não estranhe se o seu ‘amigo’ não se lembrar de você. Releve. Em geral, artistas quando não estão às voltas com shows ou outras atividades gostam de esvaziar a cabeça e, dentro dela, os nomes de pessoas. Não seja efusivo, não julgue atualizados antigos regozijos. Todavia, o pior é a celebridade não atinar mesmo quem é você. Evite, então, qualquer atitude que possa ser confundida com assédio de fã.

No contraponto, é comum em um momento seu de sucesso aparecer alguma pessoa muito conhecida, mas lhe dar um branco na hora. Isto acontece, por exemplo, num lançamento de um livro. O macete é, na entrada, alguém ir colocando em cada exemplar a ser autografado uma filipeta com o nome da pessoa a receber o autógrafo. Da parte de quem vai entrar na fila, nada de jogar fora o papelzinho. Mais que uma praxe, é um ato de generosidade para com alguém que, por puro embaraço tem lapsos de memória.

Existem dicas para tudo e não me surpreenderá se o Google souber “O que fazer para evitar gafes?” O Dr. Google tem respostas para tudo e até as explicações que um médico irá lhe fornecer em uma consulta simples. Mas, não seja indelicado revelando que já sabia e por parte de quem. Se o Google não acertar, o médico estará certo e não carecerá dizer isto para ele. Se houver discordância, não vá cotejar a diferença: “Então, o Google está errado?”

Outro preceito em consultas é não confundir o médico com aqueles livrões dos estudantes de Medicina. Depois do seu relato básico, a seção de perguntas é com ele. Quanto às suas, limite-se à abrangência da especialidade. Não pegue carona para consultas extras sobre problemas antigos ou medos novos. E não formule perguntas à base de possibilidades. “É possível que aconteça isto e aquilo?”. Para este tipo de pergunta, eles já têm uma resposta pronta: “Na Medicina, tudo é possível”. Ao que acrescento: na vida, também. Até encontrar pessoas que, supostamente, já morreram.