Luiz Martins: “Ser demagógico é produzir efeitos ilusórios, alienação, aproveitando-se de ignorância, de crenças e de agradar os fãs (fanatismo), sobretudo quando nos seus coletivos corporificam subjetividades excludentes e antidemocráticas”. (Ilustração/fonte: Revista Galileu)
Política, ciência, saúde e populismo

Luiz Martins da Silva –

Numa República, saúde é coisa pública e, portanto, objeto de políticas sociais e políticas públicas, não pode ser objeto de política partidária ou eleitoreira. Saúde é direito humano, fundamental, social e universal. Neste exato momento em que escrevo, pela primeira vez em sua existência, a Organização Mundial da Saúde faz uma reunião online, face a pandemia que se abate sobre o mundo. E o Brasil, que já foi protagonista na OMS e louvado por liderar mundialmente o enfrentamento a uma pandemia, HIV, é uma voz dissonante, e o que é pior: consta como tendo um dos quatro mais obscuros governos em relação à saúde, algo bem ao estilo da imposição da mentalidade do chefe, acima de tudo e de todos.

Primeiramente, vamos situar o que é política e qual o seu liame com um conceito até bem afim com o evangelismo em moda, que é o de vocação. Política, desde Aristóteles e de lá para cá, não tem mudado muito, a não ser com alguma tergiversação, leia-se Maquiavel e seguidores, é a arte do convencimento acerca do que é o melhor para o bem de todos, e isto se chama bem comum. Cito o grego, ainda, para lembrar os pilares da phronesis aristotélica que serve de base à melhor das polêmicas, a que direciona o debate a apontar acertadamente o que é o bom, o belo, o justo, em síntese, o bem. Esta visão orienta, por sua vez, uma compreensão que ao longo dos séculos veio facilitar o trabalho de Max Weber acerca do que vem a ser vocação.

O sociólogo germânico, em seus textos A Política por Vocação e A Ciência por Vocação aponta, claramente, como se dá – em prol do bem comum, ou não –, o exercício das carreiras individuais nestes campos. Na política por vocação, o político vive para a política, ou seja, para o bem da sociedade. Quando o político se vale da política para o seu benefício particular, dos seus, e da sua corporação em detrimento das outras, não é um vocacionado, mas, um fisiologista, um patrimonialista. Há, portanto, uma diferença entre viver para a política e viver da política. A mesma lógica vale para a ciência e para outros campos. Uma coisa é viver para a ciência, precisamente, viver para o progresso do conhecimento, e viver da ciência para si, para o lucro e para a dominação política ou econômica.

Agora, vejamos o encontro trilateral entre política, ciência e saúde. Em jogo, a própria sobrevivência humana e, a partir dela, algo a que se propôs o próprio Cristo: “Eu vim para que todos tenham vida e, vida plena”. Em outras palavras: se temos uma vida biológica e ela é finita e vulnerável, que vivamos uma vida correta para alcançarmos a transcendência, para que justifiquemos a própria vida como uma oportunidade para que, de acordo com as nossas ações, embasadas no bom, no belo, no justo e no bem, em síntese, mudarmos de paradigma e possamos pensar na possibilidade, com liberdade (livre arbítrio), de um dia sermos dignos de estar ao lado do Criador. De lá para cá, 2020 anos de persuasão, mas também de divergências e conflitos, acerca de como sagrar e consagrar a nossa vida. Ir além da matéria, ir além da biologia, ir além da fisiologia, ir além do patrimonialismo (a propriedade sem função social e sem função pública).

O advento de mais uma pandemia, nomeada de “O novo coronavírus”, põe em questão a maneira como as nações e seus governantes têm lidado com esse trinômio da política, da ciência e da saúde. Viver para a política não significa viver sem um bom salário e viver sem as condições dignas e adequadas para exercê-la. Viver para a ciência não significa que o cientista tenha de viver somente de trabalho (labor) e reflexão (oração), ou seja, viver solitariamente no seu laboratório, olhando para um oratório qual monge asceta, separado do mundo e de suas pragas e vicissitudes. Ao contrário, o cientista vocacionado é aquele que quer viver bem, sim, mas quer, acima de todos e de tudo, o bem coletivo.

Quanto ao cientista, não sendo um agnóstico, se sentirá santificando a sua vida se ajudar a prover o bem estar de todos e não apenas de si, dos seus e dos respectivos interesses. E o político? Haverá dedicação mais apontada para a sagração da vida e de suas ações do que estar, dedicadamente, no seu laboratório, oratório e parlatório a serviço do bem comum? E não se lhe exige sacerdócio e nem ascetismo, mas, ao contrário, ir sim, aonde o povo está, mas a serviço do povo e não utilizando o povo a seu serviço e pondo o povo a adorá-lo como se fosse um bezerro de ouro, inchado de vaidade.

Vejamos, agora, uma outra distinção, entre o que é interesse público e interesse do público. O interesse público demanda o planejamento e a ação baseados em conhecimento técnico e desejo de equanimidade e voltados para o bem coletivo, de imediato, médio e longo prazo. São as políticas sociais e as políticas públicas e todas as suas implicações com as realidades adversas a serem enfrentadas pelo trinômio Sociedade, Governo e Estado. Mais uma vez, a interveniência da categoria vocação e, consequentemente, da importância de vivermos em uma sociedade que possa ser autorreflexiva, ou seja, a possibilidade de que todos possamos ter opinião e participar dos debates e das decisões, nas mais variadas esferas da vida pública. E é isto que vai dar lastro às duas democracias: a Democracia Participativa legitimando a Democracia Representativa. E vai, igualmente, fundamentar uma ética para o Estado e, portanto, a construção de um Estado Ético, a se diferir do Estado-coerção.

O Estado ético vive para a sociedade, e não da só sociedade. Por fim, administrar o interesse público é, principalmente quando se está na condição de governante, orientar os recursos (com base no senso político, mas também do senso técnico) para a satisfação, dentro do possível, das necessidades de todos, algo diferente do que é ser demagógico: produzir efeitos ilusórios, alienação, aproveitando-se de ignorância, de crenças e de agradar os fãs (fanatismo), sobretudo quando nos seus coletivos corporificam subjetividades excludentes e antidemocráticas.  É quando a política em vez de engendrar o bem comum infla fenômenos como o populismo, o culto da personalidade e à falta de reflexão, pois deixa-se estar a cargo do chefe e seus supostos iluminados. Quando isto acontece, perecem todas as saúdes, inclusive, a saúde cívica.