Quando a fantasia é preferível à realidade. (Reprodução/ Wikimedia Commons)
A naturalização da tragédia ou anestesia a palo seco

Luiz Martins da Silva –

Uma tendência, de forma a amenizar a dor que sabemos, mas não queremos. A pandemia nos faz lidar com a morte em progressão geométrica como se os números já não dramatizassem, como se houvesse um teto para o horror, como se a partir de tal cumeeira algum mecanismo não nos autorize perceber a realidade.

Em luta, dois gigantes reconhecidos na literatura do gênio de Viena, Sigmund Freud: o Princípio do Prazer, uma vez confrontado com o Princípio de Realidade, resvala para a negação e para a sublimação, por vezes, produzindo reações hilárias, tragicômicas. Este sistema de anestesia foi contextualizado em sucessivas comparações, via Twitter, pelo escritor Lira Neto, vejamos algumas (12/05/2020):

“Até agora, são 12 mil mortos. O número já é 25 vezes maior do que o de pracinhas brasileiros abatidos pelos inimigos no front da Segunda Guerra Mundial. O Capitão Corona continua batendo recordes”.

“Já foram mortas 12 mil pessoas, metade das vítimas de Canudos. O governo federal promete abater pelo menos a outra metade já nos próximos dias. Desta vez, sem armas de fogo. Os instrumentos da morte serão apenas a negligência e a ignorância”.

Em repercussão, vários comentários parecidos, algo como: três tragédias de Brumadinho da noite para o dia, nos acréscimos de vítimas do Covid-19 no Brasil. Um desses comentadores lembrou umas frases de Bolsonaro, de 1999, quando ele teria dito que o regime militar matara poucos durante a ditadura, que deveria ter matado uns 30 mil, mesmo com alguns inocentes incluídos, pois numa guerra é assim.

Acrescento o lembrete que já estava corrente nas redes sociais, toda a população do Planeta ficou abalada com as cenas do abate das torres gêmeas em Nova York e, com elas, mais de três mil mortos. À ocasião, os heróis foram os bombeiros. Agora, os enfermeiros e as enfermeiras, contagiados aos milhares, pois faltam Equipamentos de Proteção Individual (EPI).

Recordo que houve um antigo estudo acerca de quantos mortos valem uma notícia para as agências internacionais e concluía, por exemplo, que um americano valia por três africanos. Pior, no entanto, os momentos de grande invisibilidade do continente africano, por exemplo, somados os mortos nos conflitos étnicos entre hutus e tutsis, um milhão, sendo 300 mil deles somente em 1990.

Da Guerra do Vietnã, me lembro, era bem jovem à época, o mundo se comovia com as cenas de tevê. Um dia, reunidas, dariam o famoso documentário Corações e mentes. O pesar pelos 40 mil soldados mortos no conflito foi tanto que mobilizou o cineasta Francis Coppola a dirigir um longa intitulado Jardins de pedra, uma referência ao cemitério de Arlington (Washington), dos mortos nas I e II guerras. Mas, quantas pessoas morrerem sem sair de Nova York, nos últimos três meses? Não mereceram sequer campas dignas, quanto mais caixões embandeirados e lápides brancas, geometricamente enfileiradas.

O relativismo da morte massificada também obedecia a uma proporcionalidade com a distância: mil mortos num terremoto no Irã ganha alguns segundos nos telejornais brasileiros. Neste momento, porém, o que espanta é não nos espantarmos quando de ontem para hoje o total de mortos brasileiros tenha passado de 11 mil para 12 mil. Aí era para os vivos estarem desmaiando com a notícia, mas, algum freio de mão é puxado desde o nosso inconsciente, esta invenção institucional de Freud a nos iludir, como num faz de conta, desses que passam de madrugadas nas telas de tevê.

Inevitável a lembrança de outros momentos em que, parece-me, os brasileiros sofreram mais coletivamente. Alguns: a derrota da seleção canarinho para o Uruguai, em 1950; o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954; a morte de JK, em 1976; a morte de Tancredo Neves, em 1985; a morte de Ayrton Senna, em 1994; e os 7 a 1 para a Alemanha. Pode ser que em algum dia venhamos a chorar mais os mortos de agora do que no presente. É outra concessão que nos faz o tal inconsciente, com um detalhe: melhor se realiza a catarse da perda quando há corpo presente, velório, funeral. Se não, a dor se transforma num crediário a nunca se quitar.