Luiz Martins: “Lamento quanto a fazer quarentena enquanto lá fora os formigueiros teimam em acreditar que o bicho não lhes pega”.
Você tem med´de quê?

Luiz Martins da Silva –

Vendo os telejornais da manhã, um paradoxo: à medida que o número de vítimas do Covid-19 aumenta, também o fluxo de carros, hoje, até com um engarrafamento num dos acessos ao Plano Piloto [de Brasília]. Convenci o meu desânimo e mesmo ele argumentando que em redes sociais ‘ninguém’ lê um texto ranzinza até o fim, teimo, estou aqui, quando menos, para compreender o que não conseguimos mudar, mentalidade, com certeza.

Comentei via zap com uma amiga de Belém e em duas linhas nos lamentamos quanto a fazer quarentena enquanto lá fora os formigueiros teimam em acreditar que o bicho não lhes pega, talvez, uma gripezinha, coisa que brasileiro vive com o pé no esgoto e tá sempre robusto e broto.

Eu diria que vive com um comichão no rabo, qualquer castigo, menos tirar o pé do acelerador ou privar-se do bate pernas do comércio. Eu mesmo, em isolamento radical, me pego elaborando listas de compras, calma, somente o essencial, paro quando me autocensuro descobrindo que faltam itens tipo fita crepe e agulhas de costurar.

A mesma amiga me manda de volta um artigo do célebre sociólogo italiano, Domenico De Masi, o homem da civilização do lazer, do lúdico e do ócio. Ele mora numa das principais avenidas de Roma, que aquilo virou um deserto, hora por outra um sinal de vida, ou de quase morte, as sirenes das ambulâncias. Rememora, no entanto, que os seus nacionais só pararam e se recolheram depois de deduzir que também poderiam logo mais engrossar o cortejo de caixões em caminhões do Exército.

Neste momento, estou aqui para dizer que uma vez ‘cientista social’ num tempo em que tínhamos até bolsa de pesquisador, estudei campanhas públicas, no contraponto das campanhas publicitárias pró-consumo, estas, que levam o sujeito a comprar além do que necessita e se endividar além do que paga. Mudar de conduta, porém, é um dos maiores desafios em mobilização social e decorrentes campanhas sanitárias.

Atentem para algo certamente já sabido. Há uma diferença entre informação e comunicação. Pessoas bem e corretamente informadas sobre danos, inclusive à saúde, não alteram o seu comportamento para melhor, apenas por dever. Sim, aqui, também, outra dicotomia importante, relativa a duas categorias distintas de obrigação: a moral e a legal. Por vezes, o procedimento correto só se faz efetivo ante repressão, multa e punição severa e exemplar. Conheço um médico que penou muito para se curar de um câncer na boca. Alfinetei-lhe com esta: o grande escritor russo Anton Tchecov já havia escrito uma peça intitulada “Os malefícios do tabaco”. O senhor, como médico, estava sabendo, não?

Então. O distinto leitor com os olhos nesta tela, a esta altura, está bem ciente: o Covid-19 mata. Claro, todo mundo já sabe. Mas, por que a maioria do mundo só deixa para levar isto a sério quando a morte está a menos de dois metros e talvez nem isto, haja vista as aglomerações nas filas, praças, feiras, mercados, praias, campinhos de futebol? E o vereador que viralizou o vídeo, ele e família gozando o Coronavírus e caprichando na chacota quando um abestado entra espirrando na cara de quem abre a porta?

Ocorre-me este primor de constatação. Fazia eu um estudo comparativo de campanhas de trânsito no Brasil e em Portugal, à época, respectivamente, campeão mundial de mortes nas estradas e campeão europeu. Aqui e lá, o menos idiota de todos sabe que beber álcool e dirigir não dá certo. E em todos os lugares há piadas sobre motoristas bêbados quando abordados. E tem aquela anedota do cara que argumentou com o padre, depois do sermão. “Mas, padre, com tanta pinga boa, como é que tem FDP bebendo álcool?”

Portugal - Entrevistando uma técnica da Prevenção Rodoviária Portuguesa responsável, ela contou-me: “Fizemos dinâmicas com jovens e descobrimos que era inútil transmitir mensagens sobre o óbvio, que beber e dirigir pode matar. Descobrimos que eles não têm medo de morrer, se sentem olímpicos”. Med’de quê, então? De ficarem aleijados. E tome vídeo de mocinhos e mocinhas deformados. Funcionou? Siiimmm!!!

Em face da atual pandemia, o que funcionará? Med’de que esse povo daqui e do mundo teria? Por que só vão acordar quando o Corona tiver levado metade da família? Por aqui, fiquei horrorizado não propriamente com as tiradas de políticos, não se cansam com ofensas e piadinhas, até sobre a China, o grande fornecedor de máscaras e respiradores. Espantado fiquei com o FICO do ministro da Saúde: aceitou uma desmobilização parcial, onde haja leitos de UTI ociosos. Estranho raciocínio lógico-dedutivo, não falta combinar com a progressão geométrica do contágio?

Vírus mata? Claro, cara pálida! Como diria uma certa pessoa pública, naquele senso comum de “Uns tantos morrerão, fazer o quê?”. Med’de que a economia pare? Parece que sim. Mas, pelo menos o mercado da cloroquina já se aqueceu, queimou, sumiu das prateleiras. Como se vê, a saída fácil, mesmo sem comprovação, é a que serve. Algum robô eletrônico poderia viralizar postagens, semeando o pânico com os seguintes horrores: homem com o novo coronavírus fica impotente. Mulher com o novo coronavírus fica flácida, até essas moças do Big Brother, coitada da mocinha que ontem teve de deixar o isolamento da “Casa Mais Vigiada do Brasil”. Acabaram de me dizer que ela é médica. Logo se vê, médicos em baixa. Até lá, gente querendo dispensá-los. Ficou o Babu, anti-herói, que não está nem aí para formas. Tomara mesmo que ele ganhe o voucher de 1,5 milhão, pois, acabo de saber que as outras mocinhas, entre elas, outras médicas, são bem riquinhas, falsas e “barraqueiras”. Jamais ouvi qualquer recriminação relativa a se lavam ou não corretamente as mãos ou se sabem espirrar tampando o jato das gotículas com o cotovelo.

Felizmente, não aparece mais ninguém com aquela de que Deus é brasileiro. Mesmo assim, há muito brasileiro fazendo bonito nessa trilha de horror. Cidadãos altruístas e engajados. Não esses que ficam prometendo canetar alguém por estar aparecendo muito e ganhando popularidade.