Em audiência pública, o deputado distrital Fábio Felix anunciou que vai à Justiça para barrar o Museu da Bíblia
Arquitetos e urbanistas defendem boicote ao edital do Museu da Bíblia

Romário Schettino –  

Uma carta aberta aos arquitetos e urbanistas brasileiros, assinada por quatro entidades profissionais em Brasília, foi divulgada ontem (12/8) conclamando a categoria nacional a não participar do concurso lançado pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal para a construção do Museu Nacional da Bíblia.

O Instituto de Arquitetos do  Brasil (IAB), o Sindicato dos Arquitetos  do  Distrito Federal (Arquitetos-DF), a Associação  Brasileira de Arquitetos Paisagistas (ABAP-DF) e a Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo – Departamento DF (Fenea) alertam para “os riscos envolvidos na participação do Concurso Público Comunitário de Caráter Cultural, na Região Administrativa do Plano Piloto”, para viabilizar o museu.

O concurso está aberto desde 19 de julho de 2021, mas o assunto vem sendo discutido desde outubro de 2019, quando o Governo do Distrito Federal deu início às tratativas para consolidar o projeto de construção.

Desde então, muitas polêmicas foram levantadas. Uma ação foi ajuizada pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA) alegando que essa obra fere o Artigo 19 da Constituição que diz: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I -  estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. A ação foi acolhida na primeira instância e rejeitada no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Mas o problema e as críticas não pararam por aí. O movimento cultural da cidade questiona a prioridade desse investimento em detrimento de outras urgências, como a falta de trabalho provocada pela pandemia e outras reformas de espaços como a do Teatro Nacional Cláudio Santoro, fechado há mais de 10 anos.

Recentemente, o secretário de Cultura, Bartolomeu Rodrigues, disse em uma live da Casa dos Quatro, que pessoalmente é contra o Museu, mas que a decisão de construí-lo se deu em função de uma lei sancionada pelo governador Cristovam Buarque em 1995. Essa lei sofreu alteração depois no governo Roriz, quando foi destinado um terreno para a implantação do museu no Eixo Monumental e definindo que a gestão será feita por uma entidade privada chamada Sociedade Bíblica Brasileira, de orientação cristã neopentecostal.

As declarações do secretário repercutiram na imprensa local e na Câmara Legislativa. O deputado distrital Fábio Felix (PSOL) realizou audiência pública virtual ontem, dia 12 de agosto, para debater o assunto e concluiu que é preciso repensar todo o processo. “Vou colocar o jurídico de meu gabinete para estudar a possibilidade de anular a lei por flagrante inconstitucionalidade e propor ação na Justiça para questionar o edital pelo grande número de erros e inconsistências na sua elaboração”, disse Félix.

Nessa audiência, o professor de arquitetura da UnB,  Frederico Flósculo, disse que “o Museu da Bíblia é antirrepublicano, inconstitucional e ofende a Lei Orgânica do DF. O Estado laico brasileiro não pode estar a serviço de nenhuma religião e todos os governadores do Distrito Federal, sem exceção, até agora, descumpriram as leis e estiveram a serviço da especulação imobiliária”.

O que se sabe até o momento é que o museu custará aos cofres públicos R$ 26 milhões, sendo que R$ 14 milhões virão de emendas parlamentares do Congresso Nacional e o restante provavelmente do GDF para ser entregue para a gestão de uma entidade privada.

Arquitetos e urbanistas – Voltando à carta dos arquitetos. Esses profissionais contam que já haviam rechaçado a primeira tentativa, em 2019, de o GDF contratar, sem licitação, uma empresa para desenvolver projetos executivos e complementares com base em croqui de Oscar Niemeyer.

“Essa possibilidade foi fortemente repudiada pelos membros do Colegiado de Entidades Distritais de Arquitetura e Urbanismo do Distrito Federal (CEAU-DF) e do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios –  Coordenação  DF (Icomos-DF) através de  notas públicas”, diz a carta.

Em abril de 2020, a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação do  DF (SEDUH/DF) propôs ao IAB/DF a organização de concurso “em duas etapas”, em que a “primeira etapa” contemplasse os projetos de arquitetura do Memorial da Bíblia e Museu de Arte Sacra e a “segunda etapa” abarcasse os projetos de urbanismo para o Masterplan de integração do Eixo Monumental, restrita à porção do Eixo Monumental situada entre o Memorial JK e a EPIA9 (próximo à antiga rodoferroviária).

“Essa proposta foi rechaçada pelo IAB/DF10, em razão de: 1) incompatibilidade da organização do concurso (tal como proposto pelo GDF) com as recomendações da União Internacional de Arquitetos (UIA) e do regulamento do IAB, 2) inversão lógica de se propor a arquitetura antes do projeto de urbanismo, que no limite deveria definir o próprio parcelamento urbano - os lotes, 3) amplitude do Masterplan que considerasse, no mínimo, o trecho do Eixo Monumental entre a Torre de TV e a Rodoferroviária”, relata o documento divulgado ontem (12/8).

A partir desse momento, as relações do GDF com as entidades dos arquitetos, por falta de acordo, deixaram de existir. O governo, então, decidiu fazer o edital por conta própria e encarregou a Secretaria de Cultura de realizar o concurso público.

“Em 19 de julho deste ano foi lançado concurso com uma série de contradições e inconsistências entre trechos das bases do Edital, portarias e anexos, além de falhas no uso de terminologias das fases de projetos de Arquitetura e complementares. Apesar da quantidade de tentativas anteriores, percebe-se ainda a falta de cuidado e de respeito à legislação vigente com as quais as bases foram juntadas, resultando um mosaico impreciso”, diz a nota.

No texto da carta aberta, os arquitetos informam que no dia 26/7/21, dentro do prazo previsto no edital do concurso, o IAB/DF enviou para a comissão coordenadora uma ampla lista com os apontamentos das inconsistências e ilegalidades observadas como argumentos para impugnação ao concurso. Não se obteve resposta aos e-mails enviados em tempo razoável, e nem houve divulgação pública das questões com suas respectivas respostas na página oficial do concurso, numa inquestionável afronta ao Art. 41 da Lei 8.666, que limita a três dias úteis o prazo para julgamento e resposta dos pedidos. Essa situação foi denunciada à Ouvidoria do Ministério Público do DF, à Comissão Especial de Licitação da Secretaria de Cultura e à Ouvidoria do Ministério Público de Contas do DF.

“A falta de transparência e respeito à legislação na organização deste certame o tem colocado sob constante insegurança jurídica, contrariando a melhor prática na organização de concursos pela administração pública, e no limite, causando prejuízos ao erário público, aos profissionais envolvidos e à sociedade de maneira mais ampla”, diz o documento.

A carta ainda lista outras considerações, como:

1 - considerando que as intenções do concurso expressas no Edital e no Anexo I ferem os incisos I e III do art. 19 da Constituição, que tratam da laicidade do Estado brasileiro24 e outras dezenas de considerações técnicas, legais e políticas,

2 - Considerando que a remuneração proposta para o desenvolvimento dos projetos é inferior ao estabelecido pela Tabela de Honorários de Serviços de Arquitetura e Urbanismo (CAU/BR)30;

3 - Considerando a falta de segurança acerca da preservação dos direitos autorais morais e da possibilidade de modificação do projeto vencedor por parte do GDF em desrespeito ao autor;

4 - Considerando a não apresentação de recursos consignados no orçamento geral do Estado para remuneração de todas as fases do projeto;

5 - Considerando que a organização de Concursos Públicos de Projeto tem sido uma das principais bandeiras do Instituto de Arquitetos do Brasil desde sua fundação, em 1921;

6 - Considerando que o Instituto de Arquitetos do Brasil é a seção brasileira da União Internacional de Arquitetos (UIA), e por isso, capaz de informar aos arquitetos brasileiros se determinado concurso respeita as diretrizes da “Recomendação para Concursos Internacionais de Arquitetura e Urbanismo” adotada por aquela entidade;

7 - Considerando que o Instituto de Arquitetos do Brasil é capaz de informar aos arquitetos se determinado concurso respeita as diretrizes do “Regulamento Nacional de Concursos de Arquitetura e Urbanismo”, versão nacionalizada dos regulamentos internacionais, cuja revisão mais recente foi aprovada pelo Conselho Superior do Instituto de Arquitetos do Brasil em 201432;

8 - Considerando que mesmo não obrigatório, o respeito às recomendações da UIA e ao regulamento do IAB tem sido fundamental para o sucesso de centenas de processos licitatórios feitos por entes privados e públicos no Brasil ao longo de décadas;

9 - Considerando que o concurso para o “Museu Nacional da Bíblia” desrespeita a Constituição Federal, a Lei nº 8.666/1993, a Recomendação para Concursos Internacionais de Arquitetura e Urbanismo (UIA), o Regulamento Nacional de Concursos de Arquitetura e Urbanismo (IAB) e faz mau uso da Tabela de Honorários de Serviços de Arquitetura e banismo (CAU/BR);

10 - Considerando que não fazem parte das bases do concurso as orientações e diretrizes da paisagem urbana e dos atributos culturais do sítio que compõem o Conjunto Urbano de Brasília - CUB, sítio patrimônio mundial, e a ausência de Plano de preservação que contenha os elementos de autenticidade e integridade cultural que garantam tanto a preservação do patrimônio cultural assim como da paisagem de Brasília, elementos que precisam  ser incorporados no programa de qualquer concurso público da Capital Federal;

Diante de todas essas questões colocadas em público, os assinantes da Carta Aberta sugerem “a não participação neste certame por arquitetos e urbanistas brasileiros, devido às inseguranças jurídicas causadas pelo acúmulo de vícios de conteúdo e de forma no edital e anexos do concurso para o Museu Nacional da Bíblia”.

Assinam a carta:

Maria Elisa Baptista (Instituto de Arquitetos do Brasil - Direção Nacional (IAB/DN).
Heloísa Melo Moura (Instituto de Arquitetos do Brasil/IAB-DF)
João Augusto Pereira Júnior (Instituto de Arquitetos do Brasil/IAB-DF - Comissão de Concursos de Projeto)
Mariana Roberti Bomtempo (Sindicato dos Arquitetos do Distrito Federal)
Lúcia Helena Moura (Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas - ABAP-DF)
Evelyn Marques (Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo - Regional Centro - Fenea).