Um libelo poético contra o patriarcalismo

Angélica Torres -

Em seu último livro de poemas, sob a perplexidade de um sensível e compassivo olhar masculino, Carlos Machado busca compreender a condenação da mulher de Ló, transformada em estátua de sal, no intrigante episódio bíblico da destruição de Sodoma e Gomorra.

Todos os poemas que compõem o livro A Mulher de Ló (Patuá, 2018) são indagações do poeta em torno da desobediência dessa “mulher sem nome” à ordem divina de, durante a fuga, não olhar para trás, aonde as duas cidades ardiam em chamas. É também do poeta o aviso ao leitor: “Tento resumir a história sem adicionar nenhum juízo de valor”.

De fato, Machado não julga a mulher nem a fúria divina. Também não julga a suspeita atitude de Ló (ou Lot), sobrinho de Abraão, de oferecer suas duas filhas virgens a sodomitas, prontos a agredirem os forasteiros (anjos) enviados para avisá-lo da destruição de Sodoma e assim salvar sua família. Não critica sequer o incesto praticado pelas filhas com o pai embriagado, a fim de garantirem sua descendência, após a mãe ter sido convertida em estátua de sal.

Mas, como ocultar ao leitor, seja fiel ou ateu, o embaraço sentido diante de insólitos e inexplicáveis registros de personagens bíblicos protegidos pela bondade divina, que o poeta chama de “desejos do chão”? Ninguém chorou quando / seu corpo vivo / foi convertido em sal.// Ninguém sofreu. / Pelo menos os escribas / disso não dão notícia (fragmento do poema “Pós-sal”).

A poeta russa Anna Akhmatova, a polonesa Wislava Szymborska e eu própria, entre talvez outros mais, publicamos poemas em defesa dessa mulher, transgressora de um veto do Criador, assim como Eva, de acordo com a narrativa patriarcal que marcou a ferro a condenação à autonomia do gênero feminino, ainda e sempre e cada vez mais vigente.

Portanto, ter todo um livro dedicado por um poeta ao tema, sob a perspectiva de uma curiosidade pintada em tons inegavelmente feministas, é no mínimo alvissareiro – sobretudo no estado de coisas da vida brasileira atual. Ao olhar para trás / a mulher de Ló / girou para a frente a roda do desejo.// Filha de Eva,/ a mulher de Ló quis saber – vislumbra Machado em “Para a frente”.

O POETA

Baiano de Muritiba, Carlos Machado (foto acima) edita quinzenalmente, há quatro anos, a página poesia.net no Facebook e há 16 anos, o site Alguma Poesia. Publicou os livros Tesoura Cega (Dobra Editorial, 2015) e Pássaro de Vidro (Hedra, 2006), além de Cada Bicho Com Seu Capricho (MOVpalavras, 2015), de poemas para crianças.

Com A Mulher de Ló, esse editor primoroso, jornalista arauto de seu tempo, poeta humanista e ativista, faz um explícito e amplo convite à reflexão sobre a precária condição existencial e social da mulher, desde o Gênesis até os dias atuais. Um gesto apenas /  ̶  e a implacável / execração dos séculos, verseja ele no poema “A mulher sem nome”.

Ainda que não oficialmente, pois se trata de um poeta, Carlos Machado põe-se ao lado dos homens que atuam nos movimentos feministas, estudando causas e meios de combate ao aumento crescente dos índices da violência de gênero, revelados graças aos registros das delegacias da mulher instaladas pelo país.

Se com seus questionamentos Machado não chega a conclusão alguma, convoca de modo pungente à urgência de se manter os olhos bem abertos em relação às “mulheres de Ló”, como no poema “Prisão”: Hora da revista / no pátio das mulheres./ A guarda armada berra/ lá de cima:/  ̶  Quem é aqui a mulher de Ló? / E todas gritam, /inclusive aquela que pergunta: /  ̶  Sou eu – uma clara referência do poeta, aliás, à cena semelhante ocorrida na história bíblica de Spartacus.

No posfácio, a poeta e cronista Dalila Teles Veras acentua com propriedade que “os poemas sugerem, apontam, acusam, indicam, levantam véus, pensam e fazem pensar, sobretudo através de perguntas” (...) e que “remetem a situações dramáticas destes nossos tempos hipócritas que tentam ocultar e justificar a misoginia, a violência e os castigos aplicados às mulheres, prática de um verdadeiro mal social, historicamente repetido e culturalmente construído e assimilado”.

O livro é, assim, instigante, e chama a atenção dos que conhecem o célebre episódio bíblico não só pelo título, mas também pelo tom cor-de-rosa que estampa a capa, o delicado “rosa bebê”, com o qual as meninas são tradicionalmente identificadas, desde o berço.

Um dos livros integrantes do selo “Donizete Galvão de Poesia”, em homenagem a esse poeta mineiro, falecido em 2014, que foi o grande amigo de Machado, A Mulher de Ló chega em hora oportuna. Se demorasse mais um pouco, talvez, o poeta pudesse ter dificuldades em publicá-lo, considerando os ares ameaçadores que rondam o gênero no país.

Termino a resenha com um verso do meu “A Mulher de Lot” (de O Nome Nômade, 7Letras, 2015), endereçado originalmente à  Akhmatova e Szymborska:  (...) Mulheres, aos lotes, agradecem (...):  verso agora dirigido também a ele, terno e comovente aliado da luta contra essa dor antológica da humanidade.

FOGO E SAL
(Carlos Machado)

Quero me casar com a mulher de Ló.

Meu desejo é abraçá-la
despida de corpo
estátua de fogo e sal.

Minha cobiça é desposar
o símbolo.

E que venham os anjos
com suas ameaças e astúcias.

Que estrebuchem de ódio
os marm’anjos raivosos
os prepostos do grão-marajá.

Quero me casar com a mulher de Ló.

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A MULHER DE LÓ – Livro de poemas de Carlos Machado (Patuá, São Paulo, 2018). Preço de capa: R$ 38. Encomendas pelo site da Editora Patuá.