Aretha Franklin, que em 1967 tornou-se ícone do feminismo norte-americano, sai de cena, mas aviolência contra as mulheres continua assustando o mundo
Esse flagelo chamado machismo

Angélica Torres -

Aretha Franklin, a rainha do soul, que, em 1967, se tornou ícone do feminismo norte-americano com a canção "Respect", sai de cena justo quando a violência contra a mulher ganha presença assustadoramente crescente entre nós.

A morte da cantora neste momento não representa, exatamente, um sinal ou um presságio sombrio para a causa, mas sim um mote para reflexão, porque números são imagens do real e eles têm mostrado o quanto tem piorado o desrespeito do homem em relação aos direitos das mulheres. A todo momento, uma notícia de agressão, de violação, de feminicídio nos alcança.

O terror não amenizou, desde o assassinato de Aída Curi em Copacabana, nos anos 50, e o de Ângela Diniz em Búzios, nos anos 60, quando surgiu com força, também no Brasil, o Movimento de Mulheres, solidárias às vitimas dessas muitas tragédias, aparentes a partir de então.

Foi preciso que o high society entrasse na crônica policial, por meio dos autores desses crimes citados, pra que viesse à tona a realidade desses e de outros delitos da violência, recorrentes nas demais classes sociais.

Muito chão andado desde lá. Muito esforço e garra de mulheres e homens feministas, estudiosos do tétrico fenômeno, na busca incessante por consciência, conhecimento de causa e justiça à mulher, ao redor de todo o país.

Surras - O músico uruguaio Jorge Drexler canta certeiramente que "se aprende de berço, se aprende de pronto, se aprende na porta de um hospital". Na semana passada, esperávamos atendimento na sala dos politraumatizados de um pronto-socorro do SUS, quando uma enfermeira chegou trazendo uma mulher em cadeira de rodas e a deixou ali.

Ao ver seu rosto macerado, sua expressão de indescritível tristeza e humilhação, não resisti e perguntei, respeitosamente, "o que te aconteceu, minha irmã?" Breve silêncio, e então com voz de dopada, os olhos no chão, ela respondeu quase gritando, pra ser bem ouvida por todos ali: "Maria da Penha!". (Foto abaixo).



Cheguei perto, toquei no braço dela e me emocionei vendo os ferimentos nos olhos, no rosto, pelo corpo. Ela me beijou a mão e me puxou num abraço forte e demorado, como que me retribuindo a empatia. Contou que foi o ex-marido e que essas cenas aconteciam há anos, até ela dar um basta em abril de 2017, se separar dele e enquadrá-lo na Lei Maria da Penha.

"Mais de um ano depois, ele foi intimado... e ontem de noite foi me procurar pra acertar as contas comigo", disse, mostrando os estragos e de novo falando alto: "É por isso que eles matam as mulheres, gente, a Lei demora demais pra ser cumprida!".

Esforços - De Aída à Ângela à Ana Lídia à Maria Claudia Del'isola às incontáveis outras mulheres mortas e às sobreviventes desse flagelo de diversas ocorrências sabidas, cada um de nós tem aprendido alguma pouca coisa, mesmo os que se recusam saber ou fingem ignorar. Mas é preciso tanto sabermos mais.

Um bom começo é fazer o esforço de ouvir amiga, namorada, companheira, mãe, irmã, prima, tia, sobrinha, avó, relatarem seus episódios pessoais de violência masculina sofrida ao longo de suas existências, em vários níveis, dos subliminares e dissimulados aos aparentes e escancarados.

Outro, é conhecer o significado de termos como androcentrismo, masculinismo, "backlash" e vários mais, ao ler artigos de especialistas sobre o tema; é buscar compreender, de olhos bem abertos, a estrutura moral e psicológica do patriarcalismo ainda brutalmente vigente entre nós; é saber que o Judiciário brasileiro, até 2002, "entendia" as queixas de violências contra mulheres como invencionices das vítimas, dando ao homem o "direito de defesa contra ela", absolvendo-o de seus crimes, extensivos aos filhos.

Ainda outra é a sorte de ter, em seu círculo de amizades, ao menos uma amiga integrante de movimentos de mulheres, uma "feminista de carteirinha", e vê-la sistematicamente flagrar os seus atos falhos machistas, sua inconsciência diante da entranhada cultura do domínio do macho sobre a fêmea, permitindo-se ofendê-la, humilhá-la, boicotá-la, torturá-la, excluí-la, exterminá-la, negá-la ao direito sobre si própria, sobre seu corpo, suas vontades, suas decisões.

É inacreditável que, ainda hoje, homens tidos como inteligentes e interessantes se sintam muito "ofendidos", quando mulheres, assustadas, falam desse assunto perto deles. Ou que reajam com um grito de "sua louca!, sua feminista neurótica!", porque uma amiga, ou o que seja, chamou sua atenção para um flagrante sexista em seu comportamento.

Se a cada 11segundos uma mulher é estuprada no Brasil, todos, mulheres e homens, estamos ameaçados quanto às nossas famílias, nossos laços de afeto. Os homens, os bons, deviam procurar ser tão ou mais feministas do que as próprias mulheres. Poderiam assim ajudar e muito a elevar a honra do gênero, vergonhoso e temerário à humanidade, em sua precária, retardada, civilização.

Nesse sentido, há 51 anos, o ousado gesto de uma até então desconhecida artista negra se tornaria um marco da luta que começava a tomar corpo em solo americano: Aretha Franklin gravaria em versão feminista o recado machista da canção "Respect", de Otis Redding, modificado por ela própria.

Aqui, a cantora ficou famosa com "I say a little prayer", de Burt Bacharah, cujo refrão em português, "Eu rezo uma pequena oração por você", agora vale quase como bênção para ela própria, mais uma estrela nascida no cosmo.

(À Ana Liési Thurler e a todas e todos os feministas brasileiros, guerreiros incansáveis em prol da causa.).