Ilustração: "Procissão", de Jean-Michel Basquiat, 1986.
Saudades e Jacarezinho, dantescos

Angélica Torres –

A máscara teatral da comédia/tragédia que
encobre a nossa face em tempos de guerra

Este não tem a menor pretensão de ser um artigo convertido em material publicável de um ombudsman. Ou ombudswoman. Mas, estaríamos nós os independentes dando atenção somente ao terror do massacre ocorrido ontem em mais uma favela carioca? Ou seria uma ilusão de ótica e de audição, em meio a tantas mídias e notícias dirigidas a públicos específicos, numerosos e díspares entre si?

Seria também impressão de que o bombardeio do horror diário pela imprensa corporativa, por seletividade em atenção a seus interesses particulares, enfatize enormemente só os assuntos que mantêm em alta a sua audiência, e com isso confunda, distraia, desvie nossa atenção cidadã de outros de grande importância?

Não que a morte do Paulo Gustavo por Covid não merecesse amplo destaque – é óbvio –, até por ter sido mais uma vítima do mesmo mórbido cenário que nos afronta, e simbolicamente, sob a máscara teatral de duas faces - afinal, ele representava o humor brasileiro, nosso poderoso salvador, resistente, imbatível mesmo nos piores momentos de nossas muitas cotidianas tragédias.

Mas é preciso considerar que a chacina ocorrida no dia 4 de maio em Santa Catarina, o estado de cultura alemã, da região que reúne o maior número de fascistas no país, não é menos escabrosa que a do massacre do Jacarezinho e chocante para o público, do que a morte do comediante.

Saudades – A tragédia ocorrida no interior catarinense é simplesmente a metáfora do corte, a facão, na esperança da caminhada da humanidade em sua saga – que são os bebês. E assassinados dentro de uma creche-escola municipal. E com professoras também vítimas do ato de insanidade. E numa cidade pacata, de menos de dez mil habitantes, por uma tristíssima ironia do destino, chamada  Saudades.

E esse fato não se constitui apenas numa metáfora, mas também no indicador de que a colheita do modelo da violência de terror exportado pelo e importado do Estado norte-americano vingou no Brasil dos facínoras, agora, pela raiz.

Os dois massacres, ocorridos em dois dias seguidos, precisam ser denunciados e lembrados juntos, como tragédias irmãs do mesmo horror que nos avilta, pelo princípio do incentivo impune à mortandade de seres humanos, e já  independente de cor, raça, gênero, credo, classe social, idade. Curioso é que ambos aconteceram logo após o Dia do Trabalhador.

Simbólicas – Talvez, a chacina dos bebês até tenha ficado em segundo ou terceiro plano, porque, de tão hedionda, nem se quer lembrar; mas não se pode subestimá-la, por ser, além de tudo, profundamente simbólica.

Entretanto, igualmente sinalizadora é a da favela em que tenebrosamente foram assassinados 25 cidadãos, por ordem do governo do estado do Rio; soube-se que às vésperas, o governador esteve com aquele ser chamado de Mito por seus seguidores – ou seja, no mesmo dia em que morreram o ator, em São Paulo, e as três criancinhas de menos de dois anos de vida, em Saudades.

Quanto ao terror no morro do Rio, repare-se: muitas pessoas, não seguidoras do tal mandatário citado, logo que vacinadas avisam contentes nas redes sociais, aos amigos: "virei jacarezinho", e assim mesmo, nesse tom carinhoso, em diminutivo, aludindo à imagem do mesmo réptil de nome usado pelo tal ser para insultar e acuar os cidadãos contra a vacina anticovid. Jacaré, pois sim. Jacarezinho, pois não?...

Convém-nos ponderar que nada é fortuito no estado de coisas que vivemos. Portanto, e por tantos tenebrosos assaltos à nossa dignidade e inteligência, nós que ainda estamos aqui, temos de seguir fortes e atentos, mantendo um olho no chão da guerra, minado por técnicas subliminares de armadilhas que, às vezes, de tão sutis, não se percebe a figura-fundo.

Assim como passou ignorada para tantos a trama armada nos últimos 5, 6 ou mais anos, também sem que se vislumbrasse a vala sem fundo para onde nos empurravam – embora para muitos ela fosse nítida, concreta, palpável, como o peso da pata de um elefante.

Mente e olho vivos, ao menos isso, já que os braços, dos que temos senso de justiça no país, parecem estar mortos.