Jean Seberg em cena ao lado de Jean-Paul Belmondo, como vendedora de jornal pelas ruas de Paris
Jean Seberg, o fascismo, as coincidências

Angélica Torres –

Cineastas têm lá suas birras e razões contra o advento do streaming. Mas graças ao Telecine, após rever Acossado, o clássico dos clássicos de Godard, e de encafifar, ué, onde anda Jean Seberg, a estrela do filme? (bem, nem todo mundo sabe tudo de cinema), abre-se então um curioso circuito de sincronias e coincidências, por informações inesperadas. Estupefatamente, você descobre o que jamais cogitaria sobre a atriz que se tornara símbolo do novo cinema francês dos anos 1960.

Com aquele rosto lindo e realçado pelo corte curtíssimo do cabelo (copiado até por Twiggy, a top model da década), aqui batizado de "joãozinho" em referência a seu nome (Jean), aquela garota, que também marcou época com as hoje clássicas fusô, camiseta e sapatilhas, nas antológicas cenas ao lado de Jean-Paul Belmondo, como vendedora de jornal pelas ruas de Paris – pois, aquela atriz, caramba, você fica sabendo que morreu aos 40 anos, em 1979, e mais: em decorrência da perseguição sofrida pelo FBI, por sua adesão à causa dos direitos humanos; em especial à dos negros americanos. E o queixo cai...

Certamente que cinéfilos até podem ter visto, nos telões mesmo, o filme Seberg (foto acima), baseado em dados biográficos de sua intensa, trágica e curta vida, com o foco nessa fase de sua atuação política. Dirigido pelo australiano Benedict Andrew, aqui, intrigantemente rebatizado como Seberg contra todos, o filme foi lançado no Brasil em 5 de março do ano passado, quando o coronavírus começava a chegar entre nós, como um exército de tártaros.

Pois, seria coincidência ou sincronia que, Acossado, o filme que deu início ao movimento da Nouvelle Vague e que a projetou mundialmente, tenha sido lançado em 7 de março de 1961, portanto, 60 anos antes desse Seberg contra todos ? (Este, por sinal, também está disponível na plataforma Telecine). Coincidência que o título de Acossado em francês (À bout de souffle) signifique ao pé da letra "sem fôlego", conectando-o com o trágico atual tempo pandêmico, e que a atriz tenha vivido sufocada, por uma história pessoal de violência policial?

Coincidência, ainda, que sua personagem icônica no filme, a Patricia Franchini, fosse uma jornalista apaixonada por literatura e que revela ao namorado Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) estar escrevendo romances? Anos depois, Jean Seberg casou-se com o escritor Roman Gary, e ela própria escreveu e publicou os livros Blue Jean, um ensaio sobre a esquizofrenia e How top Escape Oneself ("Como escapar de si mesmo"), um manual de instruções para suicídio.

Uma década radical

Acossado é o filme inaugural de uma estética artística mas também fashion. Ou seja: a moda teve nele, de fato, papel de destaque, influenciando sucessivas gerações. (Foto acima, o músico brasiliense Marcelo Lima, com figurino inspirado no de Belmondo para o clipe de “Skapada”, música de seu último CD*).

Outro forte registro no filme é o de comportamentos como o machismo da época em contraponto ao de pureza dos jovens protagonistas, saindo poesia da mão de Godard em uma crônica policial. Mas muito mais viria da década que só começava. Notadamente um intelectual marxista-existencialista, Jean-Luc Godard construiria uma obra calcada em linguagem fragmentada, admiravelmente inteligente e repleta de suas posições políticas.

Os anos 60 foram marcadamente tempos de juventude revolucionária, com protestos contra a presença dos EUA na guerra no Vietnã; década de rebeliões contra o racismo na África do Sul e no território norte-americano; de insurreições contra as ditaduras impostas e financiadas pela América do Norte na América do Sul; época de consagração de líderes como Ho Chi Minh e Nelson Mandela, Martin Luther King e Malcom X, Fidel Castro e Che Guevara; tempos também da explosão do feminismo.

A pergunta que fica no ar é: até onde a americana Jean Seberg, que deixou Iowa aos 18 anos para se candidatar e conquistar o papel de Joana d'Arc, no filme de Otto Preminger (diretor de Bom dia, tristeza, em que ela também atuou, e de Porgy and Bess), ela, que viveria até a morte em Paris, até que ponto teria sido influenciada pelo Godard das passeatas de protestos, engajado que era como artista e como cidadão, mas também pela grita universitária que, liderada por Daniel Cohn-Bendit, eclodiu no movimento Maio de 68?

Quando teria se formado em sua cabeça a consciência e o comprometimento sociopolítico, que, de volta aos E.U., já famosa por sua carreira na França, manifestou-se, ao conhecer Hakim Jamal, um integrante dos Black Panthers, no avião que os levava a Nova York?

Sabe-se daí em diante de seu envolvimento amoroso com Jamal e humanitário com entidades de defesa dos afro-americanos, doando aos Panteras Negras vultosas somas, até a sua morte. Mas nada se sabe da história de Jean Seberg em solo americano, antes dela se ingressar no universo cinematográfico parisiense. Também não há esclarecimentos consistentes sobre sua trajetória em Seberg contra todos, nem em materiais biográficos disponíveis na imprensa brasileira e na internacional, inclusive sobre sua misteriosa morte.

“Contra todos”, quem?

No entanto, está aí à mão o filme que homenageia sua memória como uma das estrelas americanas engajadas em causas humanistas – outros seriam Marlon Brando e Jane Fonda, Robert Redford e George Clooney, Angelina Jolie e River Phoenix, para lembrar alguns. Seberg é o segundo longa de Benedict Andrew (na foto, abaixo), de 49 anos, que disse em entrevista preferir o cinema como uma ferida aberta. "Quero que a plateia saia se fazendo perguntas". Pois, conseguiu, já que são muitos os que se queixam de vários aspectos indefinidos pelos seus dois roteiristas.

Mas não é o caso aqui de criticar o resultado do filme. Nem mesmo a atuação de Kristen Stewart como Jean Seberg, embora seja flagrante a falta de algum traço da beleza carismática, do charme natural e, ao mesmo tempo, da sofisticação à francesa da atriz que atraiu Godard para imortalizá-la no papel da suave e enigmática Patrícia Franchini – sobretudo se você revê, ou vê, este filme num dia e na noite seguinte vê o outro. A propósito, na autobiografia Mil vidas valem mais do que uma, Belmondo revela que Godard convidou Jean Seberg para o papel, porque nutria uma paixão secreta por ela e que pensava em se aproximarem durante as filmagens. Entretanto, nada aconteceu entre eles.

Voltando a Seberg de Benedict Andrew, o que vale muito, em tempos neofascistas, é ver como se estruturaram os métodos do serviço de inteligência norte-americano, desenvolvidos para pirar suas vítimas: a perseguição e o assédio implacáveis de seus agentes, com invasão da intimidade e disseminação de mentiras de fundo moral e conotação sexual, inclusive plantadas por eles na imprensa.

A intimidação, os danos, a destruição de reputação e carreira dos que vão contra os interesses do governo americano, ou até mesmo da vida, como ocorreu com Jean Seberg, por vulnerabilidade à devastação psicológica sofrida, não consistem em outra banal "coincidência" flagrada no filme. O diretor parece mesmo resgatar, consciente ou inconscientemente, a real personagem da atriz e espelhar a realidade do avanço da extrema direita hoje no mundo. As técnicas de tortura psicológica reveladas são as mesmas aplicadas ainda hoje – apenas de modo mais prático, agora, pelo avanço da tecnologia.

The End

Encontrada pela polícia em 1979, enrolada em um cobertor no banco traseiro de seu carro, dez dias depois de morta, na rua do prédio em que vivia com seu quarto marido, em Paris, Jean Seberg se tornou não o retrato de uma tragédia própria para cinema, mas mais um número nas estatísticas dos suicidas com barbitúricos. (E o corpo se decompondo na rua em que vivia, por tantos dias, sem que vivalma percebesse??)

Sua biografia revela que ela tentou o suicídio por nove anos seguidos; que por seu desequilíbrio emocional, perdeu um bebê no 8º mês de gravidez, que se chamaria Nina**, fruto de um seu romance com um ativista mexicano; que teve sua história pessoal mexida e remexida em fuxicos preconceituosos quanto ao seu livre modo de ser, como mulher, evidenciando os reflexos de uma sociedade conservadora, não muito diferente da atual.

Com tudo isso exacerbado pela perseguição do governo americano, o que sobra e ressalta em sua personagem é a paranoia, que a levou ao fatídico e até hoje mal explicado desfecho. Roman Gary, o marido à época em que ela foi acossada, acusou o FBI como autor da morte dela. Poucos anos depois, ele próprio cometeria suicídio.

Seberg contra todos poderia render uma história narrada de diferentes outras maneiras (e "todos" quem, cara pálida?; “Todos contra Seberg” não seria um título menos equivocado, menos suspeito?). Mas pelo menos a tiraram do ostracismo a que foi confinada por obra de policiais sociopatas, misóginos, com poderes hierárquicos, e que continuam existindo impunes, aqui, lá, ao redor do mundo – e, no caso dela, mesmo que o FBI, no ano seguinte, tenha reconhecido a sua culpa na tragédia.

And last but not least: seria coincidência a escolha da voz para rematar o filme com um toque especial de beleza e tristeza do diretor ao público? A canção é de Bob Dylan, mas quem interpreta é a diva negra, eterna ativista contra o racismo, de mesmo nome que teria a filha da atriz.
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(*) Ouça aqui na voz de Nina Simone a canção “Just like Tom thumb's blues”, que encerra Seberg contra todos.

(**) Assista aqui ao clipe de “Skapada”, do CD Marcelo Lima e os Procurados (2020), que conta com a participação de Linhos, artista da companhia brasiliense de comédia Os mais famosos do mundo. Além de Acossado, o clipe faz também referências a Daunbailó, clássico de Jim Jarmusch.