Ney Matogrosso, Milton Hatoum, Ana Miranda, Evandro Salles, Aurélio Michiles, Charles Cosac e outros amigos, colegas e parentes partilham suas memórias do multiartista Nando Cosac assassinado em Caldas Novas de Goiás (Foto: Arquivo pessoal).
Tributo a Nando Cosac

Angélica Torres –

Há três anos, neste mesmo dia 19, a notícia do bárbaro assassinato de Luiz Fernando Cosac, o popular e querido Nando, atingia como uma flecha o peito de seus muitos familiares e dos inumeráveis amigos, feitos no país ao longo de 72 anos de energia e entusiasmo excepcionais. Era impensável, inacreditável, saber que aquela figura pra lá de criativa, simpática, prestativa, generosa, alegre, extravagante, irreverente, debochada, engraçada, aquele amante inveterado da vida, pudesse ter deixado de existir e de forma tão bestial.

Arquiteto e paisagista, curador e montador de mostras de artes visuais, diretor de teatro e iluminador de espetáculos, decorador e fotógrafo, apaixonado por arte popular e contemporânea, colecionador de preciosidades e de cacarias que apanhava na rua para as suas criações, ao estilo de um Farnese de Andrade, conhecedor e contador de histórias de seus antepassados árabes e espanhóis, dono de assombrosa memória, que poderia ter escrito e publicado suas muitas reminiscências, Nando Cosac era simplesmente alguém “imorrível” no imaginário de quem o conhecia.

Parecia que iria viver 100 anos e tinha tudo pra isso: vitalidade, desejo e disposição para ser longevo, além de ter se tornado o único herdeiro dos bens de família, poucos meses antes da morte. Planejava ir morar no Rio, após o falecimento de sua mãe, Amélia Edreira. Mas antes cogitava passar um tempo na Holanda, onde há mais de 30 anos vive seu único filho.

Da falta e do crime - Paulo Cosac, em meio ao barulho do bar BR-020, do qual é dono e administrador em Amsterdã, falou pelo celular sobre o pai, com quem conviveu por pouco tempo; falou também o que pôde dizer sobre o crime, ainda às escuras. “O que eu queria na verdade era só ter tido mais tempo pra aprender com ele. Meu pai sabia muito. E muita coisa que hoje eu aprecio e que antes não dava valor. Meu pai respirava cultura”.

Exausto e aflito com a situação da Covid, o abre-fecha do comércio na Holanda, Paulo continuou depois, por escrito: “Sobre a morte dele? Um dia, o doutor Roberto (Beto Ferreira, o amigo dele) me falou que já tinha avisado a ele pra tomar cuidado com as imprudências que fazia. Mas ele não dava ouvido. Nós sabemos quem foi e porquê, mas ele já está morto. A polícia de Caldas Novas não se interessou pelo caso. Nossa própria família de lá também não quis saber. Várias pessoas sabem o que e como aconteceu, mas uma versão oficial não há. É muito triste tudo”.

Beto Ferreira, médico, acupunturista e o mais próximo amigo de Nando, em Ipameri – a cidade goiana onde ele nasceu e viveu os seus últimos anos –, diz que ninguém sabe nada ao certo. Mas sabe que sente muita falta do amigo: “Penso nele todo dia”. Vanguarda até na tragédia, a morte de Cosac foi como um anúncio antecipado do estado de coisas que a violência explícita na cena política brasileira incentivaria, de 2017 em diante.

Personagem - Nando era intenso e múltiplo. O mistério de seu assassinato retrata uma de suas personagens, a do bafon, da crônica policial, da metáfora da morte ameaçada e praticada à arte e ao artista. Já outro de seus papéis dramáticos, o do homem dos palcos, serviu de inspiração à literatura de Milton Hatoum em seu penúltimo romance, ambientado na Brasília cultural dos anos 60.

Na última sexta-feira, dia 14, foi inaugurado o Museu Municipal de Ipameri e nele um espaço dedicado à arte local ganhou o nome de “Sala da Saudade Luiz Fernando Cosac, o Nando”, fazendo jus ao seu empenho de vida toda à cultura ipamerina. E aqui, agora, marcando a data de sua partida, outra homenagem.

Hatoum, Ney Matogrosso, Ana Miranda, Aurélio Michiles, Evandro Salles, Charles Cosac, Ramon Edreira e Manoel Oliveira, além de sua última grande amiga, Vânia Cristino, abrem as memórias que guardam dessa figura amada, carismática e enigmática, marcada pela comédia e pela tragédia da máscara do teatro, na cara, na coroa, no destino, ao final.

DEPOIMENTOS

Ney Matogrosso

Amigos desde os anos 1960
“Sempre lembro muito do Nando, querido amigo, que conheci logo que cheguei a Brasília. Fomos muito pra casa dos pais dele. Várias vezes íamos para lá em turmas enormes, de trem, e depois fui mais três vezes à fazenda deles. Foi um amigo muito querido, trabalhou comigo, iluminava os meus espetáculos, pessoa muito querida. Fiquei muito, muito, triste, quando eu soube dessa morte estúpida que aconteceu com ele. É coisa de gente da pior espécie. Era um grande, queridíssimo amigo, que eu lamento muito ter ido embora da forma tão violenta como foi”.

Milton Hatoum, escritor

Inspiração para A Noite da Espera
“Não fui amigo do Nando, mas me lembro dele e da Sylvia Orthof, não sei se nos encontros de dramaturgia no campus da UnB. Talvez em 68. Em todo caso, antes do AI-5, que destruiu projetos de arte e cultura. Aliás, destruiu tudo, com o agravamento da repressão e do arbítrio. O Teatro Universitário de Brasília – TUB era incrível, e certamente o Luiz Fernando e a Sylvia foram fundamentais na construção da dramaturgia da Capital. No romance A Noite da Espera me inspirei nesse ambiente de criatividade e inquietação, em que grandes dramaturgos, atores, atrizes e cenógrafos encenavam no Plano Piloto e em Taguatinga. Sem dúvida, o Nando foi um dos ícones desse movimento teatral. No romance tentei captar essa paixão pela dramaturgia, figurada por dois ou três personagens: o diretor Damiano Acante e dois atores (Dinah e o Nortista). Nosso querido amigo Aurélio Michiles abriu generosamente o baú da memória e me contou muita coisa. Ele e outra querida amiga (Ana Miranda, então aluna do CIEM) atuaram em teatro naquela época. E depois, por algum tempo, no cinema”.

Evandro Salles, artista plástico e curador, dirigiu o Museu de Arte do Rio (MAR)

Nós e a Yoko Ono
"Conheci o Nando no início dos anos 70, quando éramos ainda muito jovens, com 17, 18 anos, no tempo do jornal A Tribo que reunia parte da juventude de Brasília. Muito tempo depois, quando assumi o posto de Secretário Adjunto de Cultura do GDF, cuidando de toda a área de artes visuais e museus, o convidei para participar da minha equipe como responsável pelas montagens e cenografias das exposições. Tivemos então uma experiência muito rica: trouxemos Yoko Ono para uma grande exposição de sua obra em Brasília, sua primeira vinda à América Latina. Era um projeto muito arrojado para a época pois sua obra de artista visual, ligada ao movimento Fluxus, ainda não havia sido amplamente reconhecida pelos grandes museus internacionais como tem sido nos últimos anos. Fizemos uma das maiores entre todas as mostras que ela já realizou, ocupando todo o Teatro Nacional e Panteão. Nando foi o coordenador de montagem e execução das obras. Ele era um profissional muito competente e formávamos uma equipe harmônica com Marília Panitz, Renata Azambuja, Fátima de Deus, Kuka Escosteguy, Romário Schettino, Nilson Rodrigues e Pedro Tierra. Esse grupo produziu uma enorme quantidade de ações culturais de alta qualidade e ineditismo naqueles dois últimos anos do governo petista em Brasília. Isso nunca mais se repetiu na cidade. Guardo grandes lembranças daquele momento. Depois que saí da Secretaria, Nando continuou trabalhando comigo nessa mesma função e fizemos algumas outras mostras juntos. Ele foi um companheiro de trabalho muito colaborativo, inventivo e criativo, um grande amigo, pessoa que todos gostávamos, pessoa maravilhosa".

Aurélio Michiles, cineasta documentarista, pesquisador, blogueiro

Nando sabia fazer de um tudo
“Nando... Fernando Cosac, quando o conheci ele estava quase se formando em Arquitetura, justamente o curso em que eu havia acabado de entrar na UnB. Era o início dos anos 70. Nando era um multiartista, sabia fazer de um tudo, tinha o domínio da produção criativa de cabo a rabo. A minha proximidade com ele aconteceu através da Angélica, amiga em comum, eles eram da mesma cidade goiana – Ipameri. Foi daí que trabalhamos juntos no Teatro do Sesi-Taguatinga. Uma experiência transformadora. Naqueles tempos sombrios, Nando como diretor do Teatro Sesi nos dava liberdade para expressar nossas transgressões contra a Ditadura. Em silêncio e entre olhares, ele compartilhava. Na última vez que nos encontramos, em 2004, ele estava empolgado, trabalhando na montagem da exposição sobre o Renato Russo. Quando o escritor Milton Hatoum decidiu escrever a trilogia O Lugar Mais Sombrio, para o 1º volume A Noite da Espera (2017), que tem Brasília como ambientação, contei ao Milton sobre a minha experiência teatral no Teatro do Sesi e daí surgiu o personagem ‘Damiano Acante’, numa homenagem ao Nando e ao seu legado às Artes”.

Ramon Edreira, escritor, pintor, arquiteto, ex-diretor da FAU-UnB, primo

Privilégio conviver com Nando
"Amigo, inteligente, criativo, generoso, e às vezes negligente, conviver com o Nando foi um privilégio desfrutado ao longo de nossas vidas fraternas. Sua presença, ainda hoje, é constante em minha memória saudosa. Seu legado de invenção, criatividade e companheirismo permanecerá ao longo do tempo fazendo falta sempre."

Charles Cosac, da extinta editora Cosac Naify, primo

Foi mesmo uma pessoa muito querida
"Nando era sim meu primo, mas o conheci superficialmente. Fui próximo do irmão dele, Renato, também já falecido, que morava no Rio e que sempre frequentava a minha casa. A primeira vez que fui a Brasília – eu tinha muita vontade de conhecer a cidade –, uma prima levou-me pra conhecer o Nando; ele estava montando uma exposição e conversamos por alguns poucos minutos. No ano passado, quando voltei para dirigir o Museu da República e morar na cidade, muitas pessoas me perguntavam se tínhamos parentesco e falavam nele com carinho. Nando foi mesmo uma pessoa muito querida. Sinto não termos nos conhecido melhor".

Manoel Oliveira, ex-montador das mostras do Museu da República

Amigo, mestre e compadre
"Nando foi meu amigo, meu professor e meu compadre, me iniciou nesse mundo de montagem, me ensinou a ser o que sou hoje como profissional. Tive o prazer de conhecê-lo e de trabalhar com ele em minha primeira montagem, a da mostra Brasília 040. Tínhamos contato diariamente. Ele foi padrinho do meu filho e um amigo de verdade. Lembro-me de um acidente em que bati meu carro, com perda total, vindo de uma montagem que estávamos fazendo no CCBB, por volta de 1h da manhã. Liguei para alguns parentes, mas também pro Nando. Em poucos minutos, lá estava ele com toalhas e cobertor, porque chovia muito e estava muito frio, e com sua inseparável máquina fotográfica, tirou fotos do local do acidente e nos levou para a casa dele. Isso fortaleceu mais ainda nossa amizade. Não dá pra escrever em poucas linhas quem era o Nando, mas dá pra resumir que era um grande amigo e sei que um dia vou encontrá-lo novamente e dar um abraço tão apertado que ele não vai poder sair, assim como a saudade que aperta o meu peito".

RELATOS

“Grandes olhos verdes e muito carisma”

Ana Miranda, escritora

Conheci o Nando no grupo de teatro da Sylvia Orthof. Ensaiávamos na casa dela, no Lago Sul, ele, a minha irmã Marlui, o Vicente Pereira, que depois veio a ser o inventor do teatro besteirol, a Lena Guimarães que era uma cantora maravilhosa, a Jardelina e a Moema, que saiu e entrei no lugar dela, Carlos Roberto Edreira, primo do Nando, entre outros vários atores.

A peça era Cristo Versus Bomba e o Nando fazia a assistência de direção e a cenografia; me lembro muito dele ali, sempre alegre, atencioso, acessível, muito sensível, aquela sensibilidade de artista, de dar sugestões bonitas. A Sylvia confiava muito nele. Eles tinham uma relação de criação bem próxima. E viajamos muito com essa peça, inclusive para o Rio de Janeiro, pra participar do festival de teatro estudantil do Paschoal Carlos Magno.

Foi interessante porque éramos um grupo de Brasília, fizemos nossa apresentação e quase ninguém foi assistir – e tinha grupos do Brasil inteiro. Aí veio o resultado e nós ganhamos todos os prêmios, de melhor peça, melhor texto, melhor direção, melhor música, melhor cantora, melhor isso, melhor aquilo. Fizemos nova apresentação como vencedores e aí, com o teatro lotado. E assim trouxemos esse troféu para Brasília, em 1968.

Fomos também todos juntos para a casa da família dele, em Goiás, onde ele nos recebeu maravilhosamente bem. E estava sempre ali, conosco, positivo, nos dando força, porque já era muito difícil fazer teatro naquela época. Então, esta é a lembrança que me ficou do Nando, aquela alegria dele, os olhos muito bonitos, grandes, redondos, verdes, e muito, muito carisma. Era uma pessoa de muita presença e um anjo. A gente gostava demais dele.


Nando em versão cômica, numa festa à fantasia, com Vânia C.

Oh, metade arrancada de mim

Vânia Cristino, jornalista

Vocês já tiveram um amigo para quem podiam ligar a qualquer hora, pedir um favor, tipo venha me ajudar num jantar, vá ali para mim ver isso, vamos viajar juntos... E rir, rir muito, de qualquer coisa, conversar sobre os temas mais variados e o assunto nunca acabar? Eu tive esse privilégio. Meu amigo se chama Nando Cosac. Ele faleceu, ou melhor, foi brutalmente assassinado há três anos, em 19 de agosto de 2017. Mas continua sendo meu amigo, meu companheiro de vida e sua falta é um vazio imenso, um soco no estômago, uma dor sem fim.

Nando foi um ser único. Multifacetado, artista, excelente arquiteto, entendia de teatro, iluminação, cena, exposição. Perdeu quem não viu a mostra sobre Renato Russo, que ele montou no CCBB de Brasília; a exposição do Glênio Bianchetti na Caixa Cultural e a da YoKo Ono, no Teatro Nacional, só para citar algumas.

Um showman. Daqueles que rapidamente viram o centro das atenções onde quer que estejam. E conhecia gente, ah como conhecia. Eu costumava brincar, chamando-o de tronco de enchente. Era difícil sair em linha reta com ele, de tanto que parava para cumprimentar, bater papo com alguém, perguntar notícias de outros.

E a memória? Prodigiosa. Lembrava-se de fatos e lugares, de histórias da família e de amigos, de gente que ele nem conhecia. “Enciclopédia”, catalogava seu único irmão, Renato. E a forma como descrevia tudo, com seu olhar acurado e o gosto excelente para música, roupas, decoração?

Fizemos muita coisa juntos. Dançamos, de madrugada, num bate-coxa em Pirenópolis, naqueles bailinhos populares na beira do rio das Almas; conhecemos em Buenos Aires um restaurante erótico, que não existe mais, Te mataré Ramirez. Um espetáculo de sabores e decoração sensual. Mas do que mais sinto falta é das coisas que não fizemos, das viagens que não fomos, das conversas agora impossíveis, só vivas na minha imaginação.

Assim como roubei do Chico Buarque o título deste artigo, tiro do poeta Mário Quintana uma frase para homenagear o meu amigo. “A amizade é um amor que nunca morre”. A você, Nando querido.

Última foto, dois meses antes de sua morte, na companhia de Vânia e amigas de vida inteira

Agradecimentos a: Beto Ferreira, Cidinha de Oliveira, Vânia Cristino, Ronan, José Mesquita, Nicolas Behr e Regina Pouchain o apoio à produção deste tributo.