Os personagens da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes deixariam babando de inveja o criador da estética do grotesco (esperpentismo) para caracterizar os protagonistas políticos brasileiros.
Como precisamos de um carnaval esperpêntico!

Angélica Torres –

Bem vindo o espírito folião coletivo que baixa no país no bendito mês de fevereiro! – ou março. Em tempos de dementes apedeutas ocupando os espaços das decisões, de foras da lei tomando conta da Justiça, nada como Momo reinando e inspirando as manifestações de rua e as do Sambódromo.

Hora de tomar de volta, ao menos nestes dias de folia, caramba!, a garra perdida pelo caminho, ante tanta afronta criminosa à nossa grandeza cultural-continental. Nem é preciso dar nomes aos bois e bufos da babel bolsonarista, reencarnados no Brasil atual. Valle-Inclán que o diga, de sua tumba, do quanto o esperpentismo cai como figurino de alta costura ao nosso momento. Sapeca aí, Sapucaí!

Mas não só escolas como a Mangueira, a Portela, a Beija Flor, a São Clemente, a Tuiuiú, a União da Ilha aprontam sua estética esperpentista. Mais do que nunca as ruas esperam nos próximos dias os blocos e os foliões de carreira solo com caricaturas e alusões às situações absurdas dos vilões da hora, até porque nunca precisamos tanto de uma catarse! – vá lá, uma revolução, com a arma que melhor sabemos manusear: o deboche inteligente e corrosivo.

Serpentinas esperpentistas – Os personagens da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes deixariam babando de inveja o romancista e dramaturgo espanhol que criou, há um século, a estética do grotesco para caracterizar os protagonistas políticos de seu país naquele tempo.

Ramón María del Valle-Inclán viveu de 1866 a 1930 e se antecipou a Beckett e Ionesco, os vanguardistas do Teatro do Absurdo, com os "esperpentos". Suas peças cutucavam com vara curta a decadência da sociedade espanhola, seu cinismo, sua hipocrisia, as brutalidades da vida contemporânea.

A crise de 1898 da Espanha, resultante da perda de suas colônias (Cuba, Porto Rico e Filipinas) na guerra contra os Estados Unidos, foi o que provocou o surto criativo de Valle-Inclán e o nascimento de seus esperpentos.

O termo na verdade foi criado por Goya, também para expressar denúncia social. Na série de gravuras que chamou de "Caprichos", produzida em fins de 1700 e início de 1800, o pintor expôs os protagonistas de sua época, que a sociedade fingia não ver. Ou preferia não enxergar. Eis a História e sua reciclagem secular e milenar dos defeitos humanos - parece que ad eternum!

Um século depois, Valle-Inclán se apropriaria do termo mas reelaborando o sentido quanto ao empregado por seus patrícios espanhóis, que se resumia em pessoa bem feia, patética e em situações absurdas. E o esperpentismo ressurgiria como uma reprodução do grotesco espanhol, obtido esteticamente pela deformação causada por espelhos côncavos.

Os esperpentos do escritor iriam expor as inversões de valores, as contravenções, as injustiças que o mundo sempre peleja pra ocultar ou disfarçar, escancarando os disparates e anacronismos de toda sorte, provocados pelos interesses da classe dominante. Aliás, no início do século, a Espanha amargava um grande atraso sociopolítico, econômico e cultural em relação ao resto da Europa.

Qualquer semelhança com o que se passa por aqui e pelos nossos países hermanos, novos 100 anos após, seria mera coincidência?

“Deformemos a expressão no mesmo espelho que nos deforma as caras e toda a vida miserável da Espanha”, explicou-se o escritor, ao lançar o programa que tornaria possível a existência do novo gênero. “O sentido trágico da vida espanhola só pode ser representado como uma estética sistematicamente deformada”, explica seu personagem Max Estrela, de "Luzes da Boêmia", peça teatral que inaugurou o esperpento como um estilo literário – ensina a especialista Joyce Rodrigues Ferraz, no livro "Ramón del Valle-Inclán – Luces de Bohemia" (Orellana, 2001).

Doutora na obra do escritor espanhol, a brasileira Joyce Rodrigues Ferraz leva a uma percepção ainda mais acurada desse fenômeno, ao afirmar que os esperpentos abordam, na verdade, o grande problema moral do século XX: “Como não tem parâmetros para decidir, o indivíduo não pode avaliar a validade de suas escolhas sempre aleatórias” e a percepção dessa perplexidade, amargurada e irônica a um só tempo, gera a angústia pelo riso.

O ciclo esperpêntico do autor se inicia em 1920. Uma década depois ele atinge a maturidade do estilo com "Martes de Carnaval", uma trilogia composta pelas peças "As galas do defunto", "A filha do Capitão" e "Os cornos de Don Friolera".

O conjunto da trilogia jaz na referência ao controle da ordem pública pelas Forças Armadas e ao conceito de honra. Já o título "Martes de Carnaval" refere-se aos vários disfarces de Marte, o deus da guerra, que na celebração da folia sai desmoralizado pelo cômico tratamento dado segundo o código esperpêntico.

Tantas coincidências e analogias curiosas com a situação do Brasil atual levam a crer que não há mesmo nada de novo sob o céu sobre o povo. Portanto, sambemos, porque como no poema Sapeca, Sapucaí!, abaixo, sabemos que:

Parecemos um só coração
em corpo débil mental.
O que nos resta de coragem
jogamos no Carnaval
mascarados maquiados
dançando fantasiados
brincando embriagados
e rindo rindo muito
atordoados filhos de Oxalá
pelas ruas do caos.
Somos assim por natureza
a leveza nos leva da vida
as dores e incertezas.
Na folia resistimos a males
malas malucos
malassombrados dos infernos.
Momo é nosso rei e guardião
na guerra dos espantos
com nossas boas badernas.
Esperpento confete serpentina
nossas armas à esperança.
Enquanto o mundo guerreia e esperneia o brasileiro dança.
(“Sapeca, Sapucaí!”. Angélica Torres Lima, fevereiro, 2020)