A indicação de Democracia em Vertigem, de Petra Costa, ao Oscar de melhor documentário deixou a extrema-direita brasileira irritada.
Quem tem medo de mulher no governo?

NdoE: Este artigo foi publicado originalmente no site Brasil Popular, em abril de 2016 -- quatro meses antes, portanto, de Michel Temer oficializar o golpe que destronou a presidenta eleita Dilma Rousseff. Decidimos republicá-lo aqui, porque, como diz com humor a colunista, o texto acabou se tornando "meio profético", com a indicação de "Democracia e Vertigem", de Petra Costa, ao Oscar de melhor documentário.

Angélica Torres (*)

O mundo de olho crítico na nossa vergonha nacional. Merecemos. Sempre se disse que somos um país nada sério, onde significativamente são acolhidos notórios estrangeiros fora da lei. Precisava acontecer no poder uma mulher sem eira nem beira política, mas, compromissada com uma postura de banana à hipocrisia governamental, para que se provocasse o desmoronar das máscaras.

Mulher é um ser fadado a quebrar protocolos. Mulher, mãe e avó, sem marido ao lado para se impor no universo dos machos, para apoiá-la nas angústias do cargo máximo, atenuar sua solidão palaciana, seus traumas de jovem guerrilheira torturada, a presidente nunca se arrogou em ser a bacana no ramo. Sabe que não tem o jogo de cintura e o carisma exigidos para o aceitável exercício do cargo, mas nem por isso empenhou-se em agradar paulistas, mineiros, nordestinos, goianos.

Trancada com a austera lisura de sua figura bizarra e guiada pela intuição feminina, talvez tenha tentado forçar a retirada do vice traidor e de aliados idem, logo na chegada ao Palácio do Planalto, sem ponderar que o mundo à sua volta poderia por isso vir a desabar no quadro da crise atual a que chegou.

Esperavam que ela governasse segundo os métodos da escola masculina tradicional. Que se prestasse a negociações, ao jogo espúrio do toma-lá-dá-cá com seus aliados-adversários, tendo no meio de campo a forte, idônea e solitária persona que a distingue.

Criticam-na sem, no entanto, vislumbrarem que os erros atribuídos à sua tresloucada gestão podem no futuro vir a ter uma leitura de viés positivo, uma vez que os efeitos despertaram a população como nunca antes para o debate político, com informações e opiniões circulando via internet e a movimentação cidadã polarizada nas ruas.

Vive-se hoje um clima de abertura do sétimo selo brasileiro, com revelações estarrecedoras da cena política vindo à tona e levando o país a flagrar o seu grotesco retrato ali refletido, e a se manifestar, se posicionar, participar contra ou a favor de seu afastamento do governo. O Brasil está em processo de amadurecimento e a "culpa" não é da mãe, mas da mulher que está à frente dessa desordem momentânea.

Se Deus escreve certo por linhas tortas, Dilma Rousseff escreve sua participação nesse drama épico com o direito à liberdade de interpretação que ela própria se permite. Porque longe de ser um simples quadro técnico, alguém despreparado para comandar o país, ou como queiram (des)qualificá-la, ela se constitui em uma personagem literária – quem, na mesma existência, teve o destino de habitar, como vítima, em porões de tortura e em salões de palácios, como mandatária?

Pode-se ainda, portanto, aguardar um inesperado desfecho para o enredo e para o seu papel de protagonista nessa História, que não se encerrará nos próximos dias, nem no amanhã de um futuro próximo.
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(*) Angélica Torres é jornalista da área de Cultura e poeta.