Angélica Torres: “Cerca de cem mulheres e alguns poucos homens percorrem juntos a plataforma superior e o térreo da Rodoviária do Plano Piloto de Brasília com cartazes e flores nas palmas das mãos manchadas de vermelho, aos gritos de "não nos matem!", "mulheres resistem!".
Uma procissão de protestos contra o feminicídio

Angélica Torres –

Fim da tarde de 28 de agosto de 2019. Uma profusão de camelôs ao longo de todo o 1º andar da Rodoviária de Brasília. Povão em grande precariedade, amontoado, mercado de transeuntes de toda espécie da classe trabalhadora pra baixo, voltando para as suas cidades satélites ou para locais do Plano Piloto mesmo.

Um grupo de cerca de cem mulheres e alguns poucos homens percorrendo juntos a plataforma superior e o térreo, com cartazes e flores nas palmas das mãos manchadas de vermelho, aos gritos de "não nos matem!", "mulheres resistem!", e o cenário evocando as procissões da Paixão de Cristo de cidades do interior: Verônicas erguendo sudários, os cartazes de denúncias, citando o nome das muitas vítimas assassinadas até agora, e só neste ano, no Brasil.

Discursos indignados, exaltados, políticos, do quadro de violências contra brasileiras, feitos de improviso por inúmeras, de idade entre 30 e 80 anos. E a condição humana denunciando essa amargura de mulheres defendendo-se umas às outras, numa canção desesperada de apelo à vida, ao direito, ao respeito, à dignidade de todas e de cada uma.

Deram pra isso agora, elas, de virar combatentes "guardiãs da humanidade" junto com outras mães, filhas, primas, tias, avós, amigas, muitas que nem se conhecem, negras, brancas, indígenas, segurando essa barra de ferro pesado, chamando atenção dos em volta – e para várias causas, não só as das tragédias que o feminismo combate.

Triste tarefa. Dura. Tempos de guerra, esquisitos, sinistros. Vai carregar bandeira é cargo muito pesado pra mulher, Adélia Prado está certa, mas é a tal verdade: alguém tem que fazer esse serviço, sujo de sangue inocente. E as guerreiras não fogem à luta do enfrentamento.

Volto sempre de protestos, seja como participante ou no papel de repórter, com uma dor fantasma oprimindo o peito; a luz da tarde que luz estranha, um voo rasante de anjo invisível largando penas de comiseração sobre as cabeças.

Enquanto caminhávamos, descíamos as escadas ou parávamos nalgum ponto, pensei, quantos homens ali, nos olhando de soslaio, com expressão de leve escárnio, meio sorriso de Monalisa no canto da boca, poderiam não ser potenciais assassinos torturadores de mulheres (che luce strana...), essas todas que o presidente em exercício e seu filho desqualificam, estimulando a violência.

Algum ouvido sensível, algum transtornado, será que captaria as mensagens? Algum efeito de conversão seria possível ocorrer naquela estação, povoada de répteis sobre rodas, entre bípedes ainda não de todo sapiens? No total, éramos muito poucos ali externando ao povo, às autoridades e instituições a não aceitação dos crimes bárbaros que diariamente chegam ao conhecimento de todos e todas. Mas que comovedor ver três ou quatro homens solidários, repetindo as frases de ordem ditadas pelas guerreiras, e mais ainda, um deles puxando justamente a clássica "machistas, fascistas, não passarão!".

Difícil ali segurar lágrimas, mas a hora não era de sentimentalismos à mostra, por mais que se notasse um discreto olhar ou um leve sorriso de cumplicidade de mulheres, em pé, nas longas filas de espera dos ônibus.

Também comovedor foi ver que dos diferentes grupos de guerreiras ali atuantes, muitas deserdaram antes do início dos discursos, para cumprir outras agendas de luta: o pequeno mas incansável movimento de resistência "Mulheres com Lula", que toda 4a feira depois de 18h se reúne para protestar em frente ao STF; e outras para irem a uma reunião na Câmara Legislativa do DF, com representantes do governo local, pra exigir de volta os recursos do Fundo de Apoio à Cultura, arbitrariamente tomados da classe artística pela atual administração.

Ao lamentarmos do comodismo geral em mostrar às autoridades que não se está conivente com a vil situação, é preciso reconhecer que mesmo em pequeno número, mulheres principalmente não arrefecem. São exemplares na abnegação e no espírito de resistência.

Já em se tratando das instituições e autoridades que decidem os rumos da nação, será que as do STF, do Congresso, dos Ministérios, conseguiriam ao menos enxergar de suas amplas e envidraçadas salas, o esforço contínuo delas e desses poucos homens, já que não se sensibilizam em ver com nitidez o Brasil despencar ladeira abaixo do abismo?

Será que prestaram atenção na Marcha das Margaridas e das Indígenas, que vieram em massa e com enorme sacrifício expor suas reivindicações e seu inconformismo com o momento do país? O descaso e a indiferença pra com a voz do povo podem, no mínimo, sinalizar que há em curso uma mumificacão das nossas instituições.