Beija Flor (Foto Pública-Fernando Gilli/Riotur) se apresenta neste sábado (17/2), no Desfile das Campeãs, junto com a Paraíso do Tuiuti: "Deram-se as mãos para expor uma radiografia do Brasil".
Beija Flor e Tuiuti: o diálogo das campeãs

Maria Lúcia Verdi –

Retornei ao tema do Carnaval após meu primo Marcelo Spalding Verdi me informar que o monstro do samba da Beija Flor seria o Frankenstein, o que se confirmou no desfile.

Acho que não me lembrei dele por não ter lido a letra do samba quando escrevi o artigo anterior. Entusiasmada com a menina cantando, citei imediatamente certos versos no texto em andamento apenas a partir da escuta.

E ainda não havia visto o desfile da Paraíso do Tuiuti quando escrevi o primeiro texto sobre esse Carnaval histórico. Uma desenvolve seu tema a partir da metáfora de um monstro lendário, a outra a partir de um tema atemporal e concreto, mas também citando um ser espiritual lendário, o nosso Calunga.

Tentarei não repetir o que vem sendo apropriadamente dito sobre “que monstro é esse o Frankenstein”, inspirador da criação dos letristas da Beija Flor, talvez menos monstro do que o “pai” incapaz de aceitar sua própria criatura por achá-la “abjeta”. O abjeto, o estranho, o feio, o fora da norma, o miserável, o incômodo é o que é alvo de preconceito, de intolerância, um dos temas da Beija Flor.

Aqui citarei trechos do texto “Frankenstein e o espectro do desejo”, de Richard Miskolci, sociólogo paulista do Núcleo de Pesquisas em Diferenças, Gênero e Sexualidade. Para ele, há uma leitura psicanalítica e uma sociológica do romance, das quais vale a pena tomar conhecimento.

Escutemos: “Uma análise sociológica de Frankenstein poderia contribuir para o projeto de desenvolvimento de uma contra-história, na reconstituição daquilo que autores como Adorno, Horkheimer e Marcuse definiram como alternativas históricas que assombram a sociedade estabelecida como forças e tendências subversivas. A possibilidade do rompimento de normas ou convenções culturais é reconhecível nessas forças sem nome ou materialidade documental, mas cuja existência moldou a constituição do que somos. No fundo, essa contra-história poderia ser melhor compreendida como uma contra-memória, na qual a fantasia e o fantasmático não são desqualificados como superstição”.

Contar a nossa contra-história a partir da história da escravidão no mundo e do fato de que a Lei Áurea não significou a “libertação” foi um importante ato didático realizado pela Tuiuti. A nossa contra-memória, o saber oral dos quilombolas, dos povos indígenas, suas experiências de dor e resistência tem muitíssimo a nos ensinar.

Numa sociedade como a brasileira, religiosa, mística e marcada pela superstição, além de tão concretamente violenta e assustadora, bem distintos tipos de monstros tem tido existência.

O médico e alquimista Victor Frankenstein, o criador da criatura nunca designada por ele com um nome, torna-se “monstro” ao querer ter os poderes divinos de criar a partir do inerte, retalhos dos corpos de marginais e assassinos rejeitados pela sociedade.

Na bateria da Tuiuti, feitores estão vestidos com tecidos diferentes entre si, um “patchwork” que alude à mestiçagem racial da maioria deles e de todos nós, bem com “ao peso de sua função”; assim como a criatura, feita a partir de uma mistura de corpos, expõe sentimentos contraditórios, sendo capaz de boas ações e de matar sem piedade.

A psique humana é labiríntica. Cito Mikolci: “O caráter múltiplo do monstro, deste um constituído de muitos, lembra a ideia inicial de Freud sobre o inconsciente como um lugar onde todos os outros vivem dentro de nós mesmos. Outros sociais, portanto, todos os condenados, marginais, excluídos ou reprimidos, os que cruzaram a linha da transgressão - subversão da ordem, dos valores ou da moral vigentes”.

O cérebro inserido na criatura é do corpo do falecido mestre de Victor Frankenstein - que ela viesse a ser capaz de sentir e necessitar amor parece não ter sido considerado pelo médico em sua busca desesperada, ambiciosa por vencer a morte, como também vemos no belo filme de Kenneth Branagh “Frankenstein de Mary Shelley”.

Criar vida e depois renegar o criado, criador abandonar a criatura, em nosso aqui e agora, é clara metáfora para um Estado que não deseja responsabilizar-se pela maioria de seus filhos, ocupando-se apenas dos que se inserem na “norma”, dos que já tem os instrumentos para, mal ou bem, sobreviver “no mundo”. A Tuiuti encarna esse não-pai na figura de Temer Vampiro Neoliberal, nele centralizando o abandono e a desmedida autoconfiança em suas decisões antidemocráticas e temerárias; a Beija Flor possui toda uma ala de Vampiros (“Vampiros Sanguessugas Exercem Seus Podres Poderes”), como sabemos existirem, desde sempre e por todos os lados, em nossa ex-colônia sugada e entregada. Os políticos - representados tendo na gola a Praça dos Três Poderes - como morcegos-vampiros “que se alimentam do sangue que sugam do povo brasileiro até a última gota”.

O subtítulo da obra de Mary Shelley é “o moderno Prometeu”. O moderno Prometeu do século XXI continua acorrentado e perpetuamente mutilado, num sofrimento sem fim. Terá o povo brasileiro recebido o fogo de seus deuses (Senhores) por algum heroico Prometeu?

Se pensarmos nos expoentes de nossa cultura letrada e popular (os sambistas tantas vezes o comprovaram) diremos que sim; se olharmos à nossa volta diremos que não. É um povo que não recebeu do Estado as condições básicas para se desenvolver, povo exposto em chagas, pela Paraíso do Tuiuti.

Um país que nunca tratou radicalmente a tremenda, universal, questão da escravidão, conforme a escola mostra e conforme vemos todos os dias: “Eslavos foram escravos e originaram este termo, africanos também foram. Os de olhos claros ou os da Guiné... parafraseando Candeia: Todas as raças já foram escravas também...” (libreto explicativo oficial da Escola). E a escravidão universal de hoje é ao Grande Capital, como explicita a Escola de Nilópolis.

Diz o libreto da Beija Flor: “É chegada a hora de juntarmos os retalhos das nossas consciências, que deixamos no baú empoeirado do nosso comodismo, e costurarmos as fantasias dos abandonados e dos excluídos. Nesse cortejo popular, os verdadeiros monstros da nossa sociedade desfilarão sem máscaras, para serem reconhecidos e malhados na quarta-feira de cinzas! Que as Marias, damas de casa e do povo, sejam as nossas Pietás, retratando a luta de todos que apenas desejam ser amados e respeitados”.

Aqui, nesta terra das contradições mais gritantes (haja vista a resistente alegria dos carnavais, não obstante tudo) ter um povo respeitado parece tarefa de Sísifo, para ficarmos com o mito - algo da ordem do impossível.

Uma obra escrita há duzentos anos revela o drama da ambição desmedida e questiona a ética, de uma elite (a que o médico Viktor F. pertence e a nossa) capaz de “experimentar” qualquer coisa na tentativa de realizar objetivos questionáveis, sofra quem sofrer. Lemos na explicação do enredo da Beija Flor: “[...] o monstro do Dr. F. é a nossa realidade invertida, é a nossa culpa escancarada e jogada em nossas caras, mas da qual fugimos”.

Liberte o cativeiro social!...Não sou escravo de nenhum senhor” afirma o samba enredo da Paraíso do Tuiuti, as vozes dos escravos clamando por algo que nunca lhes foi dado pela Terra\Estado\Senhores que os receberam. Os senhores nunca foram pais embora com certa ambígua cordialidade tenham tentado nos fazer acreditar no contrário, após a Lei Áurea. Até hoje as grandes famílias brasileiras se mantêm no poder graças a artimanhas dessa ordem, além de outras bem pouco gentis. (A seguir, cena da Paraíso do Tuiuti - Foto Pública - Gabriel Nascimento/Riotur):

O Estado que abandona, e que hoje vive uma guerra civil na cidade símbolo do país, é composto por restos humanos, cadáveres e restos em vida. Lemos no libreto da Beija Flor: “A incerteza caminha lado a lado com os bandidos soltos pelas ruas, e a sensação constante de insegurança, o medo de acontecer algum infortúnio ou `fatalidade´, a ideia de `sair de casa sem saber se vamos voltar a salvo´, ratificam a naturalização de uma violência avassaladora que tomou conta do Brasil, e fez especificamente do Rio de Janeiro, uma cidade partida”.

Continuo com as explicações sobre as alas e alegorias relacionadas ao samba enredo da Beija Flor, contidas no libreto: “[...] um rato, animal que vive nos esgotos e se prolifera em meio ao lixo, e simboliza a sujeira, a imundície. Ainda na parte dianteira, observa-se a imagem do Palácio do Congresso Nacional, localizado em Brasília, a `Capital dos Monstros´ onde há sujeira por todos os lados. Ao lado do Congresso, aparece a imagem da face da ‘estranha criatura‘, criação que foi fruto da ambição desmedida do Dr. Frankenstein, e representa as `monstruosidades´ que são resultado das desastrosas decisões que por vezes levam o povo brasileiro à fome.”

O edifício da Petrobras da Beija Flor, que se transforma numa favela, “representando o empobrecimento da população em função da ambição e corrupção desmedida” tem seu contraponto no neo-tumbeiro da Tuiuti.  

Assim diz o libreto oficial da escola: “A alegoria é dividida em dois níveis para evidenciar a marcante desigualdade social do Brasil. Na parte inferior a plástica do carro 03, “Tumbeiro”, retorna para atualizar a situação da massa trabalhadora, poeticamente, colocando-os no lugar dos escravos antigos. Na parte superior a classe dominante extrai e concentra cada vez mais as riquezas geradas pelo trabalho do povo e se articula, econômica e politicamente, para sua manutenção e de seus privilégios. À frente, a mão do trabalhador brasileiro continua acorrentada ao velho tumbeiro demonstrando que o antigo regime exploratório dos ricos sobre os pobres avança em golpeantes reformas...”.

A “criatura” de Victor Frankenstein transforma-se em distintas imagens do abjeto: “É o ‘monstro do lixo‘, abandonado, sujo, em meio à lama, ao esgoto. As questões ecológicas também são o retrato da imagem da rejeição, com o lixo espalhado por toda a cidade, e nas inúmeras tubulações de esgoto que aparecem nas laterais da alegoria. Esta é toda ambientada na cidade do Rio de Janeiro, em que vemos a imagem do Corcovado, entrecortado por túneis, que levam às ruas e avenidas da cidade por onde circulam veículos, mas também levam às ciladas da vida quotidiana. Não vemos a imagem do Cristo Redentor, mas na parte inferior, a figura do Pensador, de Rodin, que aparece representando a desilusão diante do abandono da sociedade, o caos do dia-a-dia em que vivemos”. Em vez do Cristo, da religião, o Pensador que reflete.

Todos os temas já mencionados e os subtemas explicitados pela Beija Flor – o trabalho escravo; as prisões como escola do crime; a infância abandonada; os impostos não revertidos em benefício do povo; as igrejas que exploram os fiéis; o descaso com a saúde pública e a educação; os sem teto; a voz das ruas que se expressa como pode – são explicados pelo que a Tuiuti expôs: somos uma ex-colônia escravagista que nunca enfrentou de frente as questões centrais da eterna dependência do capital e das metrópoles.

Nas alas e alegorias “o magnata da exploração e a costureira escravizada”, o “trabalho informal”, o “guerreiro da CLT” e o “manifestoches” a Escola Paraíso do Tuiuti traz o poder da síntese das imagens em toda sua força semiótica. Inesquecíveis.

Por que o povo do samba quer libertação, e para isso, dá voz às ruas, exercendo a sua cidadania no palco mais democrático e diversificado da nossa cultura popular”, diz a Beija Flor, enquanto a Tuiuti coloca seu segundo casal de mestre salas e porta bandeira como “nobres maltrapilhos que bailam para driblar as mazelas sociais e as adversidades da vida com alegria e leveza, como se rodopiar fosse uma forma de contornar os problemas ocasionados pelo descaso”.

Os sambas clamam por algo que é só nosso: a capacidade de espelhar nos grandes desfiles sérias questões sociais e históricas ao som da música e da alegria, mistério brasileiro, pura alquimia inexplicável que faz do nosso povo algo digno de muito cuidado e atenção.

A Tuiuti, segundo suas palavras, pretende mostrar “que a relação é ruim não só para o escravo, aquele que sofre no corpo e na alma e carrega por toda existência suas feridas abertas, como também para o escravizador, pois não se pode ser feliz provocando a dor alheia ao fazer uso de tão degradante instituição”.

Ou seja, questiona algo também apontado pela Beija Flor quando se dedica a um “monstro” que também é humano, assim como seu criador teve seu lado “monstruoso” - à complexidade da existência. E continuando a leitura do libreto: “Impiedosa a escravidão se reinventa e o cativeiro ganha novo requinte de crueldade, ainda é possível ouvir o estalar de seu açoite pelos campos e metrópoles. A alforria não cabe na carteira e a lei não protege nem os sexagenários. O controle social não nos permite enxergar que estamos todos no mesmo barco. Um Temeroso Tumbeiro”.

O Brasil de hoje parece sim estar assombrado, enfrentando monstros multiplicados, sendo a sensação de impotência e desânimo regra geral: “Ganância veste terno e gravata. Onde a esperança sucumbiu”.

Vejamos como explica esse sentimento Miskolci: “Ser assombrado equivale a entrar em um estado animado em que uma violência social reprimida ou irresolvida se faz conhecer, mesmo que de forma oblíqua”. Os dois sambas-enredo trazem, marcadas a ferro, a essência de nossa História fantasmática, embora – afinal, é carnaval! – apostem no poder do samba, da catarse coletiva como elixir da resistência e da transformação. Tomara que sim.

E recorro, mais uma vez, a Miskolci: “Uma história crítica das normas e convenções sociais exige atenção ao invisível, ao que não se manteve por meio de documentação oficial, conhecimento reconhecido ou materiais acessíveis, antes em ausências, formas alternativas de conhecimento e experiências não reconhecidas”.

Que os meninos abandonados neste nosso país possam ser reconhecidos como forma alternativa de conhecimento. Que as dramáticas experiências vividas pela camada social que se alimenta “de luz” e vive ao relento, enfrentando os monstros que assombram a falta de tudo, possam servir como instrumento para o repensar político do país, para a necessária reconstrução.

Beija Flor e Paraíso do Tuiuti deram-se as mãos ao interpretar e expor uma radiografia do Brasil.