Na série Cacofonias, sons recolhidos na escola em que trabalhava Luiz Olivieri, referências culturais e o significado das informações de um mundo eminentemente visual (Foto: Leticia Verdi)
A geopoética e a geopolítica na Extra Classe, de Luiz Olivieri

Maria Lúcia Verdi -

O homem é um tubo sonoro por onde passam ventos que misturam nossa respiração ao cosmos.”  (Bachelard, epígrafe da tese de doutoramento de Luiz Olivieri)

Nestes tempos em que as emoções são, quase todas, melancólicas ou indignadas, visitei a mostra Extraclasse: sondiagem e escuta como métodos de invenção, do artista e professor Luiz Olivieri, atualmente no Centro Cultural Banco do Brasil-BSB (CCBB-Brasília). Emocionou-me adentrar um espaço despojado e instigante e descobri-lo engajado e cósmico - imersão num universo poético-político mais do que oportuna.

Na instalação criada por Olivieri faz não apenas uma análise crítica do sistema educacional brasileiro - um Eletrocardiograma dele, como se intitula um dos trabalhos expostos - como também uma amostragem do que a imaginação de um industrioso artista pode fazer. Dada a complexidade do exposto, para escrever esta matéria senti necessidade de ler a tese de doutoramento do artista em Artes, pela UnB, da qual retiro as citações. A mostra e a tese têm o mesmo nome.  As obras da instalação precisam ser vistas e ouvidas, mostra aural que é, difícil de aqui ser descrita.

Tendo a escuta como método de investigação enquanto educador e artista, Luiz desenvolve o que chama de “sondiagem”, seu modo de estar no mundo, sondando a vida numa “vadiagem” prazerosa, ao construir sua “cartofonia individual”. A partir dos estímulos sonoros, mapeia a realidade que o cerca e na qual se insere como “espião” e “estrangeiro”, palavras que emprega na referida tese, ao explicar sua postura enquanto professor. Encarando a escola como residência artística, escutando a sala de aula e o que está ao redor dela, como sugere Paulo Freire, Luiz propõe recriar a educação tradicional.

“Muitas vezes me vejo como um espião dentro da escola pelo simples fato de estar à escuta. Um professor-espião em exercício efetivo na Secretaria de Educação do DF, que escuta as atrocidades e violências diárias do Sistema Escolar. Um professor diante do tempo-surdo das escolas.”

E além de espião, estrangeiro, pois faz parte da estratégia do artista-professor ficar dois anos em cada escola, de modo a não se acomodar no espaço, não “fazê-la casa”, amortecendo sua profícua inquietação.

“O estrangeiro entende o espaço como vivo, o professor-estrangeiro escuta as pulsações da escola e estimula os seus alunos a também a estranharem.” É ambiciosa a tese, propondo que a educação incorpore conceitos e atitudes do filósofo, do psicanalista, fazendo com que o par aluno-professor, quase como na relação socrática, questione e repense a realidade.

Escutar o outro é agir politicamente. O professor que pratica uma geopoética da escuta amplia seus horizontes e os dos alunos. Em nosso presente, que o professor-artista chama de tempo-surdo – surdo à escuta do outro, das minorias – é urgente que os educadores despertem para o papel da escuta e não apenas da fala, fala na maioria das vezes “cacofônica”, institucionalizada e castradora. Identificar palavras-pulsantes (“arma sonora contra a cacofonia da escola”) na fala dos alunos, e que eles também possam identificá-las como vibrantes, significativas, em suas vidas e em seu entorno - palavras como estrelas-guias para a vida, penso.

“A geopoética da escuta desconstrói o espaço, revela seu antiespaço, evidencia sua sombra sonora, os sons em penumbra. Talvez por isso, a escuta seja essa grande abertura, a fissura provocada pelas oscilações no\do espaço, uma sismografia por dentro.”

Os sons em penumbra, o sem espaço para ser dito numa sociedade que luta como nunca antes para não ser hegemônica, mas que ainda o é, em que as instituições e a mídia silenciam as vozes dissonantes. Os sons em penumbra das populações indígenas e afrodescendentes, da população Lgbtqia+, pontuados pela poética de Hilda Hilst, João Cabral de Mello Neto, Waly Salomão, Hélio Oiticica e outros, são tornados audíveis numa tese que remete às vozes de lideranças, pensadores e artistas que se afirmam no atual momento da história brasileira.

Na sua instalação, composta por cinco obras, feita “em parceria” com ex-alunos, Luiz Olivieri faz uso de elementos fundamentais da escola tradicional, como a lousa e as carteiras, provocando a imaginação do visitante. A coautoria se deve ao fato de Luiz expor em quadros frases anotadas pelos alunos a partir da escuta desde suas casas, sons que Luiz chama de “paisagens-sonoras”.

No centro da sala (foto, abaixo), a obra Ponto de encontro, um círculo de carteiras em torno de um centro vazio, círculo que se repete, em outra obra, no desenho feito por uma agulha de toca-discos de vinil. Círculos que remetem ao cosmos, aos enigmas que os signos cotidianos podem trazer. Círculo de cadeiras à espera do diálogo, da troca de ideias. Essa mostra consegue ser um grito ao mesmo tempo agudo, poderoso - pelo que traz de informação e reflexão sobre o dilema da educação neste hiper complexo século XXI – e grave, delicado, em seu aspecto visual despojado.

Na série Cacofonias, composta por sete blocos, sons (palavras, frases) recolhidos na escola em que trabalhava o artista, referências culturais, breves depoimentos de educadores, registros da atenta escuta de um artista comprometido com o significado das informações que nos vêm de um mundo eminentemente visual, rapidíssimo, no qual dificilmente se chega à compreensão das inúmeras verdades e inverdades que nos circundam.

A obra Lousa, palavra cacofônica ou mato da escola - recorte a laser sobre fórmica verde utilizada na lousa escolar, de longe, se vê como uma quase “pintura” verde e na qual, de perto, podem ser lidos textos – é talvez o exemplo central da síntese político-poética da mostra. Textos são transformados em mato, ilegíveis à distância, identificáveis de perto.

Em outro trabalho, Educação por ondas, de 2019, igualmente sintético e desafiador, que não faz parte da exposição em pauta, Luiz grava “as ondas eletromagnéticas da escola” (sua “topofonia”, título de uma das obras expostas na mostra em questão) e as reproduz em ripas de madeira, dando “à escola e a seus acontecimentos a dimensão cósmica”. O cosmos que também é anunciado como signo e pergunta no círculo vazio que as cadeiras escolares delimitam, bem como no círculo que a agulha do toca-discos desenha.

Obra ícone da postura existencial-política de Olivieri é Antena de Altitudes, de 2015, na qual o artista registra em áudio, vídeo e foto uma apropriação do mastro da bandeira nacional, instalada no mastro da Praça dos Três Poderes. Símbolo de um dos piores momentos da ditadura, durante o governo Médici, Olivieri registra os sons da “estrutura metálica, aparentemente silenciosa, que reverbera nos tubos gerando um som complexo, capturado por microfones de contato.”  A bandeira não aparece no vídeo, fazendo com que haja um desconhecimento em relação ao suporte da obra: “É comum me perguntarem se as imagens e sons da obra são de uma estação espacial, um foguete ou uma usina atômica.” Segundo Olivieri, o trabalho pode ser visto como uma abertura para o questionamento das relações entre o indivíduo e o Estado.  “Antimonumento”, Antena de Altitudes é proposta como “experiência de imersão no desconhecido cotidiano.”

Desconhecido cotidiano que Luiz, como um engajado flaneur latino-americano, mapeia. O mundo a partir de múltiplas ondas sonoras e da profunda inserção na realidade sociocultural do país. Em liberdade, o artista-professor escuta sons da terra, do ar e do espaço provocando o desejo em nós de também escutá-los.

(As fotos são de Joana França)
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Serviço:
Mostra: Extraclasse: sondiagem e escuta como métodos de invenção
Autor: Luiz Olivieri,
Em cartaz: até 17 de abril
Local: Galeria 4 do CCBB-Brasília - SCES Trecho 2.
Horário de visitação: de 3ª. a domingo, das 9h às 20h30.