Construindo o pós-patriarcado

Maria Lúcia Verdi -

Nossa entrevistada, Ana Liési Thurler, é filósofa, socióloga, feminista, e autora de dois livros fundamentais para a compreensão das relações sociais brasileiras: Em Nome da Mãe. O não reconhecimento paterno no Brasil e Pós-patriarcado. Um tempo em construção. Além de mestra em Filosofia, Ana é uma mulher guerreira, mãe solo de duas filhas, funcionária de carreira do Banco do Brasil, onde trabalhava na área de formação de pessoal.

Como educadora e socióloga, é mais do que oportuno trazer aos nossos leitores as opiniões, ideias e propostas de uma mulher comprometida com as causas essenciais para a nossa sociedade. Especialmente nesse dia, 8 de Março, em que se comemoram a existência e a luta de mulheres de todas as cores, gêneros e origens.

O livro de Ana Liési, Pós-patriarcado. Um tempo em construção (Nau Editora), será lançado em tarde de autógrafo no dia 11 de março, sexta-feira, a partir das 17h, na Livraria e Café Sebinho (406 Norte, em Brasília).

A seguir a íntegra da entrevista:

MLV - Seu primeiro livro Em Nome da Mãe – o não reconhecimento paterno no Brasil, num certo sentido desdobra-se neste seu segundo Pós-patriarcado – um tempo em construção. Essas duas obras, realizam uma importante documentação e análise sobre nossa sociedade. Você poderia sintetizar as ideias centrais que as unem?

ALT - A questão central nos dois livros é o patriarcado que marca profundamente a sociedade e o Estado brasileiro, um Estado ainda patriarcal, ainda violador dos direitos humanos das mulheres. O patriarcado tem produzido uma cultura misógina e necrófila. O patriarcado e o machismo são gatilhos para todas as violências contra as mulheres. Focalizo nesses meus trabalhos a violência de deserções da paternidade com o não reconhecimento da criança, da filiação e, também, com o não reconhecimento de maternidades, dando as costas à mulher, que fica na condição de mãe-solo.

Há indicações de mudanças nesse quadro de não reconhecimento paterno e de descompromisso masculino com a própria descendência?

Processos culturais e sociais não são lineares e com o patriarcado não é diferente. As pesquisas mostram que há grandes resistências a mudanças, mas há também um inegável processo em andamento, com perspectivas de superação do patriarcado.

Em Pós-patriarcado, um tempo em construção, o livro que estou lançando agora, apresento, na primeira parte, a resistência do patriarcalismo, por meio de histórias envolvendo filhas e filhos sem reconhecimento paterno, lutas de mães solo, ausências paternas. Histórias todas verdadeiras, todas brasileiras, todas ocorrendo no século XXI, reunidas desde 2000, quando iniciei o Doutorado na UnB. Senti que essas histórias precisavam ser contadas, pois há uma permanência da cultura patriarcal reverenciando o pai, sacralizando a vontade do pai, especialmente quanto ao acolhimento, ao reconhecimento - ou não - de suas crianças. O fato é que nossa sociedade chega ao limite de normalizar o não reconhecimento paterno. 

Na segunda parte do livro, apresento mudanças efetivas, importantes acontecendo...  Transformações reveladas nas vozes ousadas de filhas e filhos. Transformações reveladas nas novas configurações familiares.... famílias lesboafetivas, famílias homoafetivas, famílias transafetivas, livres famílias monoparentais femininas e masculinas. Mudanças se revelam, também, em mulheres assumindo novos espaços de poder no Sistema de Justiça, produzindo outras epistemes, surgindo outras decisões. 

E seu livro anterior, Em Nome da Mãe. O Não Reconhecimento Paterno no Brasil?

Nele compartilhei a pesquisa realizada nos cartórios do DF, mapeando crianças destituídas de reconhecimento paterno, nos anos de 1961, 1970, 1980, 1990 e 2000, ou seja, em suas quatro primeiras décadas. Examinei mais de 180 mil registros de nascimento e fiz muitas escutas que me permitem afirmar ser o pai, o reconhecimento pelo pai, o amor do pai, profundo objeto de desejo de todes.

É preciso lembrar que reconhecimento tem sido tema candente, remetendo a dignidade, amorosidade, respeito, cidadania. Reconhecimento tem deflagrado demandas por políticas públicas inclusivas. Lembremos Winnicott, o psicanalista inglês, que anunciou: Sou reconhecido, logo existo, enfatizando o caráter relacional do reconhecimento e da própria existência humana.

Reconhecimento paterno materializa-se no Registro de Nascimento, fonte de todos os demais documentos. Realizei pesquisa nos dez Cartórios do Distrito Federal, onde examinei 183.618 Registros de Nascimento. Fiz pesquisa quantitativa, encontrei 21.991 registros sem reconhecimento paterno. Em oito dos dez Cartórios, mais meninas não têm reconhecimento paterno. Fiz pesquisa qualitativa, ouvindo histórias de vida dessas pessoas sem reconhecimento paterno. Todas sonham com o acolhimento, o afeto, o cuidado do pai.

Ana Liési, gostaria que você nos contasse como foi o seu despertar para a causa feminista e dos direitos humanos. Você cursou Filosofia, tem Mestrado sobre Unamuno e, posteriormente, realiza Doutorado em Sociologia. Como foi, por que ocorreu esse trânsito de uma área para a outra? Foi a realidade brasileira falando mais alto?

Foi no Rio Grande do Sul que nasci, cresci, casei, tive duas filhas, descasei. Lá me graduei em Filosofia, quando o país temeu o exercício do pensamento e os generais varreram Filosofia dos currículos. Mesmo assim ainda insisti no Mestrado em Filosofia, que, com o exercício do pensamento crítico, com o exercício de questionamentos, foi ponte importante para eu chegar ao feminismo e aos Direitos Humanos.    

No Mestrado, trabalhei, sim, com Unamuno. Em minhas andanças, constatei que ele tinha considerável presença nos países hispânicos do continente. Apesar de sermos todos ibéricos, no Brasil ele estava ausente. Cheguei a ele, explorando nossa condição latino-americana, com o desejo de aproximação da América hispânica. Unamuno viveu na virada dos séculos XIX e XX, entre 1864 e 1936, namorou o irracionalismo e em O Sentimento Trágico da Vida (1913) declarava não ser a razão humana razão que a si própria sustenta, tendo raízes no irracional, na consciência vital, no sentimento trágico. Foi duas vezes reitor da Universidade de Salamanca. Destituído em 1924 e exilado nas Ilhas Canárias, por oposição ao General Primo de Rivera, retornou à Salamanca, em 1931, reassumindo a reitoria. É conhecida sua última participação pública em 12 de outubro de 1936, em solenidade na Universidade, na condição de Reitor, definindo-se em favor da causa republicana.

O General franquista Millán Astray atacara a Catalunha e as províncias bascas, apontando-as como cânceres no corpo da Nação, que o fascismo, que é o saneador da Espanha, saberá exterminar. Os falangistas gritaram: Abaixo a inteligência! Viva a Morte!  A voz de Unamuno foi ouvida: Este é o templo da inteligência e eu sou seu sumo sacerdote. Estais profanando este recinto sagrado.

Esse quadro lembra o que, em nosso país estamos vivendo hoje, com mais de 650 mil mortes, boicotes à vacinação, à proteção das crianças e a constantes tentativas de irracionalidade. Em contra-ponto, clamamos: Abaixo o negacionismo, abaixo o irracionalismo! Viva a Vida!

Quanto ao trânsito dos campos de estudo, não foi grave, não houve nenhuma ruptura. Mesmo porque com o curso de filosofia, trabalhei também com sociologia. Dei muitas aulas de sociologia lá no RS e aqui em Brasília. Não me sinto em exílio da filosofia. É preciso questionar a realidade em todas as suas dimensões. 

Então você tem o Sul e o Centro-Oeste em sua formação, em sua história...

É verdade. E isso tudo se complementou, se completou. Tenho gratidão ao Sul, entre tantas outras razões, por ter lá construído forte sentimento de pertencimento à América Latina, ter me propiciado a oportunidade de conhecer Buenos Aires, Montevideo, Assunção, Santiago  até bem antes do Rio de Janeiro ou de São Paulo, nutrindo esse sentimento de latinidade pela vida afora, alimentando-o também ao participar de Encontros Feministas Latino-americanos e Caribenhos, na Argentina, na República Dominicana, na Costa Rica, no Uruguai, constituindo e ampliando, pelo continente, redes com companheiras do movimento feminista, do movimento social.

Tenho também gratidão ao Centro-Oeste, onde me fixei em Brasília, ainda na década de 1970, me apaixonei por este espaço de encontro de tantos Brasis e me candanguizei. Troquei a antiga paisagem protetora de minha cidade natal – Santa Maria, cercada de morros por todos os lados - pelos horizontes amplos do Planalto Central. Passei da proteção familiar ao exercício da autonomia, construindo minha identidade feminista, aprofundando o sentimento de brasilidade, com a participação em atividades diversas pelo país, em Encontros Nacionais Feministas, em atividades dos movimentos sociais, de Direitos Humanos...

O que você destacaria em sua trajetória feminista?

Destaco o privilégio de ter participado no processo Constituinte, quando vi bem de perto o Estado patriarcal brasileiro resistindo a reconhecer direitos de cidadania das mulheres. Da instalação da Assembleia Nacional Constituinte à promulgação da Constituição, em 05 de outubro de 1988, as mulheres organizadas fomos resistência feminista com reflexões e análises críticas permanentes. Não tínhamos internet, redes virtuais, comunicação instantânea, mas as mulheres organizadas - com o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), fazendo a coordenação de todas as regiões -, se mantiveram mobilizadas. E incorporamos 85% de nossas demandas de então, ao texto constitucional.

Que lembranças você traz da assembleia Nacional Constituinte? Qual o olhar das mulheres sobre a Constituinte?

A igualdade de gênero é questão prioritária na pauta de uma democracia real, inclusiva, feminista. A Assembleia Nacional Constituinte foi instalada, em 1º de fevereiro de 1987, com enorme desigualdade de gênero. Androcêntrica, sua composição era de 95,4% de homens parlamentares. A bancada feminina na Constituinte era formada por 26 deputadas, em um conjunto de 559 parlamentares (487 deputados e 72 senadores).

Não alcançávamos 5% dos constituintes. Não havia possibilidade de ilusões e aprendíamos, intensivamente, sobre o patriarcado e a injusta desigualdade entre os gêneros no espaço político. Ali estavam retratadas as extremas desigualdades de gênero em toda a sociedade brasileira. A desigualdade entre os gêneros não é um ponto fora da curva. Em uma sociedade patriarcal, é uma constante social.

E mais: os três estados do Sul - incluído aí o nosso estado - enviaram para a ANC representações 100% masculinas. Quase todo o Nordeste elegeu deputadas constituintes - Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte. E em sua primeira eleição – em 1986 -, o Distrito Federal, onde moro desde 1978, também elegeu duas mulheres constituintes: Márcia Kubistcheck e Maria de Lourdes Abadia.

Quais as demandas na Constituinte que você destacaria?

A igualdade de gênero é questão prioritária na pauta feminista.  Trabalhamos por menos desigualdades no espaço público, mas também no espaço privado: na família, na maternidade e na paternidade. Demandamos licença-maternidade, licença-paternidade, creches, pré-escolas.

Na votação do texto constitucional em primeiro turno, em 25.02.1988, previsivelmente, a licença maternidade teve menor resistência e votação melhor (425 votos a favor, 11 contra e 28 abstenções) do que a licença paternidade (337 votos a favor, 67 contra e, igualmente, 28 abstenções). O CNDM, então sob a presidência de Jacqueline Pitanguy, convocou um Dia Nacional de Luta, em 20 de abril de 1988, pela manutenção desses direitos no texto final.

A campanha Filho não é só da mãe, lançada no calor do processo constituinte, provocou homens e mulheres a pensarem que criança precisa de cuidados do pai e da mãe, da sociedade e do Estado, sacudindo a poeira de nossa cultura sexista. Durante a Constituinte, mobilizou-me muito a campanha por paternidade presente e solidária, por creches como direito da criança e da família. E o texto final determinou ser a criança prioridade absoluta do país (artigo 227). Hoje, com creche e pré-escola, a Educação Infantil integra a Educação Básica brasileira.

E entre as demandas incorporadas, qual seu destaque?

Destaco o fato de a filiação ter recebido tratamento igualitário. Nossa Constituição estabeleceu: Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação (Artigo 227, § 6). Finalmente, todos @s filh@s são iguais em direitos e qualificações. Mas, a recomendação contida nesse dispositivo só se efetivou parcialmente. Os registros civis de nascimento foram criados no Brasil, em 1888 e nele constaria a condição de filiação da criança: legítima, ilegítima, exposta, adotada... Por um século, muitos registros de nascimento traziam inscrições desqualificadoras, tais como filho ilegítimo, filho natural, filho adulterino, filho incestuoso, além de pai desconhecido, pai ignorado. Essas discriminações hierarquizavam as crianças e atentavam contra a dignidade delas. Felizmente essa recomendação constitucional foi cumprida e o dispositivo está valendo na vida. Nesse quesito avançamos.

Entretanto, passados mais de 30 anos da promulgação da Constituição, o direito ao reconhecimento paterno - implícito nessa anunciada igualdade entre os filhos - ainda não se efetivou, nem na legislação ordinária, nem na vida. A paternidade se reafirma como pedra angular do patriarcado e a vontade do pai continua inegociável.

No Brasil do século XXI, o pai indicado pela mãe pode se recusar ao reconhecimento do filho e também a se submeter ao exame genético – um exame sem possibilidade de falso positivo. Ao regulamentar esse dispositivo constitucional por meio da Lei 12.004/2009 - com a presunção da paternidade relativizada -, o Estado brasileiro passa a contribuir diretamente para a criação de uma legião de mães solo e de crianças hierarquizadas, com seus direitos fundamentais desrespeitados. Com essas questões tenho tido comprometimento. 

Por que o título do livro aponto para um pós-patriarcado?

O patriarcado é estruturante da sociedade e do Estado brasileiro. Tem sido matriz de desigualdades e poderoso sistema de privilégios para uns e de opressões para outras. Tive os primeiros insights desse processo desde cedo, saindo da infância, observando a vida das mulheres e o mundo em meu entorno.

Logo duvidei que o patriarcado fosse da ordem do necessário, fosse fonte de justiça e felicidade. Duvidei que a ordem social - sempre econômica, política, cultural, histórica -, fatalmente, só poderia ser assim mesmo. Foi pensando criticamente, que não tardei em chegar ao feminismo.

Anuncio um tempo pós-patriarcal, porque se o patriarcado ainda resiste – e documento isso na primeira parte de meu livro -, inquestionavelmente a ordem patriarcal vai se transformando. E esse fato é apresentado e documentado na segunda parte do livro. Não há dúvida de que estamos já fazendo a travessia para o pós-patriarcado. 

Sempre mirei o patriarcado, buscando analisá-lo em processo, em um horizonte de superação. Christine Delphy garante ser o patriarcado, em aliança com o capitalismo, o inimigo principal. Sustentação do patriarcado, a paternidade foi a questão para a qual me dediquei no doutorado em Sociologia das Relações Sociais de Gênero, especialmente ao não reconhecimento paterno, recorrente no Brasil - uma forma de violência patriarcal contra mulheres e crianças, uma violência e um desrespeito a seus Direitos Humanos.

Você vê com esperança 2023 para essa sua área de atuação? Acha possível que o país retome o caminho que sonhamos para ele, o da justiça social e do desenvolvimento andando juntos?

As atuais disputas obscurantistas envolvendo relações sociais de gênero no Brasil são backlash, reações fundamentalistas desesperadas diante dos avanços feministas. Apesar de tudo, sinto já estar chegando o tempo pós-patriarcal quando homens e mulheres estaremos paritariamente no Legislativo - no Parlamento, em suas Mesas Diretoras e Comissões -, no Judiciário – em todo o Sistema de Justiça, da primeira instância aos Tribunais Superiores -, no Executivo – nas Prefeituras dos mais de 5.500 municípios, aos Governos das 27 unidades da federação e à Presidência do país, onde uma mulher, Dilma Rousseff, já foi eleita e reeleita. A paridade entre mulheres e homens é uma exigência da democracia inclusiva, do reconhecimento da dignidade e da cidadania das mulheres. Muitos coletivos trabalham para colocar mais mulheres na vida política do país, entre eles a #partidA, onde atuo. Nas eleições de 2018 e 2020, contribuímos para o ingresso de mulheres em sua diversidade - indígenas, negras, transgêneras, cisgêneras, LBTs, heterossexuais... – nas diversas instâncias do Legislativo e do Executivo. E tudo isso também expressa superações do patriarcado.

Eu continuo esperançando, mas somente com um bom resultado nas eleições de outubro vislumbro possibilidades de retomarmos, em 2023, o caminho da justiça e do desenvolvimento social, dolorosamente abandonado por nosso país.