Para além da crônica há o poeta

Maria Lúcia Verdi –

Surpreendeu-nos Flama - Edição do Autor, com ilustrações de Wagner Hermuche - presente de Severino Francisco para os leitores de suas sempre  oportunas crônicas publicadas no Correio Braziliense. A começar pelo nome, considerando-se a respeitável discrição com que Severino se move na vida. Sempre desconfiei que havia algo lá além do cronista atento e sensível, algo que o olhar e a gestualidade desse goiano arretado deixava vazar, algo rimbaudiano. Esse algo era poesia. Olhar que em Abril desesperado descreve:

Perdido entre mangueiras
Assolado pelo azul
Os muros espreitavam a tudo com tédio.

E que em trecho do ótimo Lobo-Guará diz:

Estaco até mesmo diante de uma
Foto do lobo-guará,
Pois ele mantém a flama de
Uma ferocidade serena
Que perturba algo ancestral dentro de mim

Severino me responde: “Fiz o melhor que pude. Boa ou ruim, essa é a minha poesia, não tenho nem tempo de fazer uma melhor. Para mim esse é o conceito de felicidade possível.”  Qual poesia não tem seus altos e seus baixos? Mesmo Drummond não permanece sempre na mesma altura olímpica. E gosto demais dessa ideia de que a felicidade possível seja fazer o que corresponde à verdade do sujeito, sem expectativas.

Em suas palavras, desde Marte ou desde o infinito, no entanto, o poeta é atento à beleza que passa, que permanece se “roçada e roçante\ tateada e tateante”. E esse autor inflamado pelas delicadezas do amor, reflete:

“Algumas vezes, fico pensando\ se o amor é um problema de concentração.\ Não perco um segundo da respiração, \ da forma, dos movimentos e do silêncio.” Não creio que haja quem não sonhe com essa atenção permanente, a que os criadores têm frente às criaturas e o amante frente ao ser amado. E em Mão, o lírico jornalista sente e adivinha nas mãos da amada, “a mulher querendo ancorar \o seu calor.”

Conheço Severino desde muitas décadas, desde um tempo relatado pela poesia: “Naquele tempo, eu sofria de feras. \ O fogo não tinha línguas para falar. O ar da cidade bocejava de tédio\ há milhares de anos”. O fogo, a flama, não irradiava, o que veio a ocorrer depois, como sabemos seus leitores.

Quando li o primeiro poema deste Flama, reencontrei o amigo dos vinte anos e me impressionou a dura (e leve) exatidão com que o autor retrata um “ele”, um homem, que  a partir de seu microcosmo, retrata certamente a uma infinidade de seres semelhantes:

Dezenove anos

Arrastado pela desordem do corpo.
Os cabelos de arame berravam
Para os muros da cidade.
Tudo está tão longe.
Aqui é sempre outro planeta.
Rápido, um copo de veneno
Para aplacar a inocência.
Este é um homem
Que vai se despedaçar.
É muito frágil a eternidade.

A inocência terá sido aplacada no autor em vestes de cronista e jornalista, mas não nas de poeta; nela, desvela-se a inocência do jovem frente à beleza, à mulher, ao desejo e o amor, a necessária inocência frente ao mundo para que o vejamos ainda, apesar de tudo, como novo, como abertura e possibilidade.

As palavras que mais se repetem do livro são: metafísica, corpo, beleza, amor, eternidade, tempo, alma, falta e falha, estas duas últimas estão em dois poemas-chave. O que nos constitui é a falta, vide a psicanálise. Nascemos faltantes e essa falta-falha é o que nos leva a agir e a criar, cada um com sua obsessão, sua neurose, sua loucura, sua criatividade. Em Um retrato relâmpago lemos:

Os espelhos quando o veem
Quase trincam com a falta e a falha.
Sempre com os pés no chão. De Marte.

E em Brasiliana, o belo poema que encerra o livro:

O sertão virou mar, mas sem som,
De ponta-cabeça, no alto, espraiando-se
Em câmara lente, com majestade,
Na ópera aberta das nuvens
Desgarradas no descampado
Sob a iminência do espaço,
Que expõe a falta e a falha,
Ameaçando engolir tudo.
O mar virou sertão, em riste,
Riscado pela faca de Cabral,
Com suas árvores mirradas,
Mas bravas, que resistem, tortas,
Retorcidas de angústia,
Agarrando-se ao chão esturricado.
O silêncio deixa tudo muito longe.
Com os sapatos sujos de terra vermelha
Carregando no corpo a ferida metafísica
De quem mora muito próximo do infinito.

Mas esse poeta que se diz “desconectado, precário e mortal”, sabe estar vivendo “a vida ao vivo”. E nesse viver também conectado, homenageia Clarice (“Lisérgica\ sem precisar de nenhuma droga \ metade animal metade humana"), Armando Freitas Filho (“Máquina de escrever, \ mas não a mecânica,\ máquina anímica\ entranhada no sangue”), Rubem Braga (“água viva manando das pedras,\ para beber não em copo,\ mas com as mãos em concha”) Manuel de Barros (“Ele parece aquele gato zombeteiro\ de Alice no país das maravilhas,\ que desaparece, mas deixa o sorriso\ parado no ar”), João Cabral (vide o poema acima), Glauber Rocha (“O morto não está morto,\ de outro tempo,\ ele manda sinais de insubmissão.”) e no belo poema em homenagem a Van Gogh e a seu pai:

Naquele verão, o meu pai
desembrulhou o sol no meio da sala
de dentro de um fascículo semanal,
na cidadezinha cercada de bananeiras.
Abra os olhos, as cores não são mais cegas.

Nas orelhas de Flama, machadianamente, Severino cria um personagem, alter-ego do autor, que escreve com humor e verdade, sobre o “gaiato Severino” e diz: “Não é hipócrita (o autor), considera bons alguns poemas e versos que escrevinhou.” E para comprovar mais uma vez tal consideração, transcrevo a homenagem que faz ao nosso poeta maior com este Drummond no meio do caminho:

Certo dia, tropecei
na pedra drummondiana
no meio do caminho
e, acostumado aos serafins
resplandecentes do décor renascentista,
não vi graça no anjo guache
oblíquo e dissimulado na sombra
soprando profecias irônicas;
e achei que o torto
estragava a poesia.
Mas, de repente, desasnei e descobri
que o torto nos expressava
e era puro diamante
a pedra bruta
na qual eu trumbicara.