Na bucólica paisagem de Cabo Verde tem barquinhos coloridos, como na fotografia de um disco da Cesária Évora
Cabo Verde: quatro ilhas em duas semanas – parte 1

Zuleica Porto -

O nome da capital do Cabo Verde sempre me proporcionou devaneios. Neles, a Praia seria uma cidadezinha bucólica, com praias pequeninas e barquinhos coloridos, como na fotografia de um disco da Cesária Évora.

A Praia que encontramos não era bem a cidadezinha bucólica dos meus sonhos, mas quase. No Plateau, o centro buliçoso da capital, o tradicional mercado de frutas, legumes e comida feita na hora convive com lojinhas de artesanato, bares, restaurantes com cadeiras na calçada e rapazes que fazem câmbio de “euros e reais” pelos escudos do Cabo Verde.

Estes são inconfundíveis, com suas pochetes recheadas de cédulas. Para o eventual visitante, um alerta: no comércio, só aceitam cartões dos bancos nacionais. Nada de visa ou semelhantes para pagar as contas. É bom ter à mão uma boa quantia em moeda nacional.

A Sucupira é uma espécie de “feira de Caruaru” caboverdiana, onde senhores vindos do continente vendem lindos panos, blusas e vestidos.

A máquina de costura é uma constante; os costureiros fazem os vestidos na hora ou os ajustes necessários nos que já estão prontos. Compramos de dois irmãos muçulmanos, um deles o costureiro.  Enquanto vendiam, cuidavam de suas crianças que brincavam por ali. Também à venda uma grande quantidade de roupas, sapatos, cosméticos e outras bugigangas vindas dos Estados Unidos, trazidos pela diáspora em suas idas e vindas.

Prainha bucólica encontramos na antiga capital Ribeira Grande (hoje Cidade Velha), a primeira urbe planificada dos trópicos, construída em 1460 pelos portugueses. Era o ponto de chegada e partida dos africanos escravizados e levados para as Américas. Ainda está de pé o pelourinho, muda e eloqüente testemunha dos horrores de um passado que se eterniza nas servidões contemporâneas. Da igreja onde o Padre Antonio Vieira disse seus sermões quando de passagem nas tantas viagens entre Brasil e Portugal, só restam ruínas da torre (foto abaixo). Mas a Rua de Banana, a primeira da cidade, é bonita e bem acolhedora, arborizada e cheia de...bananeiras, claro. Os moradores das casinhas restauradas oferecem hospedagem, alimentando meus planos para uma próxima viagem.

A população ali é na maioria negra, bem negra, como quase não encontramos no Brasil. E é um alento para o meu culpado coração brasileiro ver a população, com seus cabelos crespos penteados nos mais diversos estilos, hospedada nos hotéis, clientes dos restaurantes, banhistas da pequenina praia. Gostam de tomar banho todos juntos, num cantinho de mar, rindo e brincando.

Em Santiago, a ilha onde ficam a Praia e a Cidade Velha, fica também o Tarrafal, que apesar  de ter uma praia simpática, é lugar de triste memória – ali foi construída a prisão salazarista para os dissidentes locais ou portugueses. Hoje o local abriga o Museu da Resistência.

Depois de quatro dias na Cidade Velha seguimos para a ilha do Fogo, rumo ao grande vulcão que lhe deu o nome. Posso dizer que São Filipe, a pequena capital da ilha, é a cidade mais catita que já visitei. Casinhas coloniais muito coloridas, uma pracinha arborizada onde assistimos a uma partida de Ori, o jogo tradicional do Cabo Verde. Tentamos aprender a jogar, mas não conseguimos entender nada, jogam rápido demais. Dessa pracinha tem-se uma vista linda para o mar e a praia de areia preta. As ruas de ladeiras que lembram Salvador são muito limpas, o que se mostrou uma constante em todos os lugares que visitamos – ausência de lixo nas ruas e praias.

No dia seguinte, depois do café com o famoso queijo de cabra, pegamos um coletivo superlotado para Chã das Caldeiras, onde se ergue o Fogo. Em cada uma das muitas paradas o motorista Adriano saudava cada passageiro que embarcava ou motorista com quem cruzava com uma alegria de dar gosto e fazer esquecer o aperto em que viajávamos umas dezoito pessoas e muitas mercadorias que ele milagrosamente conseguia acomodar. Ele disse, quando entramos no Parque Nacional do Fogo, onde fica a Chã das Caldeiras: “chegamos em outro planeta”.

Estranhamento e encanto nas duas noites que passamos naquele lugar. Os habitantes são muito altos, louros, de olhos claros, a pele branca ou morena como a nossa. Todo mundo ali é primo ou irmão, as casas não têm trancas e ninguém pega uma fruta do terreno do outro sem pedir permissão. Frutas? Pois é. Maçãs, romãs, figos, marmelos, tudo plantado na terra negra, na lava que se estende por toda parte. E muita uva, que se torna passa na própria parreira, ou da qual fabricam vinho em sistema de cooperativa. O biotipo e o cultivo da uva devem-se a um certo Duque de Montrond, que ali se instalou em finais do século XIX, teve cerca de vinte filhos e ensinou os habitantes a fabricar vinho. Morreu em 1900.

Dormimos na Casa Marisa, onde o chão é quente, pois fica sobre trinta metros da lava despejada pela erupção de 2014. Não há iluminação pública, nas casas a eletricidade é fornecida por geradores, e a água é uma preciosidade que vem da chuva ou de lugares próximos.

Nas noites sem lua impressiona o imponente vulcão iluminado por estrelas que nunca vi tão próximas nem tão brilhantes. E, acreditem ou não, faz um friozinho à noite. Durante o inverno, dizem os habitantes, a temperatura pode ser abaixo de zero.

Apesar das erupções, da escassez de água, do acesso difícil, não querem deixar aquele chão negro, suas lavouras, seu modo de vida. Preferem suas tradicionais casinhas construídas de lava negra, redondas como as ocas dos indígenas brasileiros, às casas que o governo oferece mais perto de São Felipe. A paisagem, em tons que vão do cinza ao negro, proporciona fotos inusitadas, em que vibram as cores de roupas e objetos.

De Fogo, seguimos para São Vicente e Santo Antão. Elas merecem mais espaço, então ficam para o próximo texto - parte 2.