Zuleica Porto: “Este livro é a manifestação de um ´sonho acordado` evitando que se tornem reais as previsões mais terríveis do Admirável mundo novo , de Adous Huxley, publicado em 1932.”
O otimismo apocalíptico de Sidarta Ribeiro

Zuleica Porto -

No admirável mundo novo do futuro ao nosso alcance não haverá espaço para tiranos, muros ou guardas, pois a verdadeira segurança é conviver em uma comunidade de amigos. Não podemos mais viver ilhados como náufragos e amontoados como formigas, com medo uns dos outros. Será preciso realizar uma ocupação mais inteligente dos espaços, com bem-estar social e planejamento familiar que permitam um equilíbrio entre as gerações, para o convívio saudável entre todas as idades”.

Sonho manifesto, o novo livro do Sidarta Ribeiro, já está nas livrarias. Em boa hora nos chega, em capa alegremente psicodélica, o “lado político do Oráculo”, como define o autor. Para quem ainda não leu, O oráculo da noite – a história e a ciência do sonho, (Cia. das letras, 2019) é um livro que alia os saberes da neurociência, medicina e psicanálise às narrativas literárias e históricas dos povos, com algumas memórias oníricas do escritor – é um sonho de infância, recorrente e assustador, que abre o livro – para traçar uma história da mente humana.

No livro mais recente, o escritor fala do sonho na segunda acepção da palavra em português: sonho como anelo, desejo, vontade de que uma nova sociedade seja engendrada pelas gerações que hoje habitam o planeta. Justa, igualitária, sem fronteiras, guerras ou diferenças sociais, em que todas as espécies sejam felizes.

O livro é a manifestação de um “sonho acordado” e também uma declaração pública em que o escritor sugere mudanças para alcançar o “mundo novo” deste sonho, em tudo o inverso do pesadelo imaginado por Aldous Huxley, evitando que se tornem reais as previsões mais terríveis do Admirável mundo novo publicado em 1932.

Somos capazes de mudar esse mundo antes que as trevas sejam irreversíveis, é o que lembra o Sonho manifesto de Sidarta. Ele é composto por 10 capítulos, ou dez exercícios urgentes de otimismo apocalíptico, como diz o subtítulo. O primeiro passo, perceber a oportunidade de mudar, remete o leitor ao “vírus que colocou todo o planeta de joelhos” e obrigou a humanidade a reconhecer o estado de sofrimento em que já vivíamos, mesmo antes da pandemia. Sofremos no corpo e na mente, “imersos em 1,4 bilhões de carros e 3 bilhões de smartphones”, lembra o autor. E segue o inventário de desgraças que assolam o planeta: fome crônica, violência desatinada, descaso pelas vidas de populações inteiras. Nem precisamos sair de casa para testemunhar tudo isso; pela TV, rádio, jornais, pelas telinhas dos tais “telefones espertos”, ou mesmo andando pelas ruas de qualquer grande cidade brasileira.

Esta semana, caminhando pelo Setor Comercial Sul da cidade de Brasília, me deparei com um cenário que bem poderia ilustrar o livro: enquanto os edifícios que antes abrigavam escritórios comerciais estão vazios, uma multidão de vendedores ambulantes ocupa os pilotis e demais espaços disponíveis, oferecendo todo tipo de mercadorias, de toalhas e camisetas do Lula a frutas e legumes de ótimo aspecto (realmente, bem mais bonitos que os das prateleiras dos supermercados). São os desempregados que lutam para fugir da fome e conseguir manter um teto sobre a sua cabeça e as dos seus familiares. Comprei uma camiseta e uma toalha do Lula na mão de uma moça muito simpática, que estava com o marido e um filhinho de uns 6 anos, os dois de camisas do Flamengo. Conversamos sobre o Lula, o Flamengo, as férias escolares que obrigam o casal a levar o Marcus Vinícius para o batente diário. Cabe a pergunta: por que os atuais trabalhadores do Setor Comercial Sul não podem morar em seu local de trabalho?

O segundo exercício de otimismo apocalíptico é compreender que estamos diante da oportunidade, “preciosa”, de sair do turbilhão insensato que torna impossível um futuro nesse planeta, por enquanto ainda habitável. Além de oportuno, o momento também é urgente, alerta Sidarta Ribeiro. Diz o escritor que “nós, os primatas superinteligentes, criamos (na natureza) um enorme desequilíbrio: enquanto uma fração muito pequena da população humana – os materialmente ricos – experimenta condições que permitem evitar qualquer tipo de dor, a maioria das pessoas e dos outros animais experimenta estresse e dor por toda a vida, com morte cruel e precoce”. E este é o momento em que podemos, agindo com sabedoria e técnica “impecáveis”, diminuir o sofrimento humano e não humano, “criando um paraíso digno de ser exportado para outros planetas”.

Caso contrário, mantendo a marcha da insensatez, o futuro que nos aguarda é mais e mais sofrimento para todas as espécies. Um dos horrores possíveis, que a ficção também já apontou, é a especiação humana: a formação de uma espécie de humanos ciborgues, inteligentíssimos e longevos entre os mais ricos e, entre os miseráveis, uma espécie de desnutridos, atrofiados biológica e culturalmente, vivendo das migalhas. Como a troca genética e cultural entre os do “andar de cima” e os do “andar de baixo” é quase nula, não é difícil imaginar essa possibilidade. Há outras desgraças possíveis, como a perda de todo o acervo cultural dos povos indígenas, bem como da biodiversidade de regiões extensas, como a floresta amazônica, com a ocupação predadora dos espaços. É longa a lista. Vivemos, portanto, um momento paradoxal de potência destrutiva e construtiva, e para que lado iremos?

A resposta virá de nossas ações e inações. Valorizar e cuidar do que de bom temos em nossa herança cultural, o que nos trouxe até aqui, e jogar fora “o lixo tóxico” que veio junto na bagagem, que nos atravanca, envenena e faz sofrer. O autor fala de curar a nossa pior ancestralidade. No Brasil, a sociedade injusta e desleal gerada pela tradição patriarcal, trazendo em si o machismo, racismo, homofobia, opressão, e segue o rol. Nas sociedades judaico-cristãs, a demonização do sexo e da maternidade torna “feias” as palavras ligadas à procriação e ao prazer...É muito lixo que precisamos descartar.

Por outro lado e ao mesmo tempo, é urgente honrar e preservar o que temos de melhor em nossa herança, ou a nossa melhor ancestralidade. Como a capacidade de cooperação, praticando o que o monge budista e cientista (Ph.D. em genética celular)  Mathieu Ricard considera A revolução do altruísmo (publicado no Brasil pela Palas Athena, 2015), título do alentado estudo em que advoga que sobrevivemos não principalmente por nossa agressividade, mas pela nossa capacidade de ajudar uns aos outros. Para nos inspirar, os exemplos surgem em nossa melhor ancestralidade. Em seu extenso currículo, Sidarta inclui a condição de formando do Grupo Capoeira Brasil, e recorre à história de vida e resistência de dois famosos Mestres capoeiristas, Pastinha (fundador da Capoeira Angola) e Bimba (fundador da Capoeira Regional). O que nos ensina a capoeira? “Todo mundo gosta de vencer; o difícil é aprender a cair, a levantar e a se esquivar, com um sorriso no rosto e nova demanda para jogar”, um ensinamento precioso nesta luta-dança, cheia de música, respeito e alegria. “Visto de cabeça para baixo, esse mundo torto até que pode ter jeito”, diz o capoeirista Sidarta, e me ocorre a visão de minha neta Cecília, espanhola batizada Corajosa na Capoeira, que descobriu o mundo de ponta-cabeça, e o visita sempre que pode...Ambientalista, feminista, militante das boas causas, Cecília me faz lembrar a menina Greta, sueca que sacudiu a juventude com suas “Sextas para o futuro”, afinal o futuro é deles e delas, jovens que têm direito ao melhor mundo ainda possível.

Seria longo demais descrever todas as ações propostas nesse pequeno, valente e precioso Sonho manifesto, que surge em consonância com o pensamento de gente como Ailton Krenak, que busca de um “futuro ancestral”. Ou Davi Kopenawa, que alerta para a doença do dinheiro de que sofremos nós, “o povo das mercadorias”. Ou a feminista italiana Silvia Federici, que em Reencantando o mundo – o feminismo e a política dos comuns (Editora Elefante, 2022) reúne uma série de artigos, dela e de outros pensadores, reivindicando uma nova política, em que o comum em que viveram (e ainda vivem) muitas culturas ancestrais, seja retomado como modelo. É o que busca também a líder comunista Yolanda Díaz, propondo uma política sem partidos ou siglas, em que todas as classes sociais tenham voz. Greta. Federici, Yolanda, Cecília.  O futuro, além de ancestral, tem rosto e nome de mulher. Há de ser alegre, solidário com todos os seres e colorido, este futuro. Ou não será.
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Sonho Manifesto
Autor: Sidarta Ribeiro
Companhia das Letras, 2022