Marcos Bagno: "Nossa briga – minha e de vários outros linguistas brasileiros – não é com Portugal nem com os portugueses. Nossa militância tem como alvo a ideologia linguística obsoleta e cada vez mais fascistoide que domina a mentalidade de boa parte da escassa camada letrada do Brasil".
Eu, Portugal e os portugueses

Marcos Bagno -

Me perdoem por escrever sobre mim mesmo, é a primeira vez e espero que a última também. A desculpa é que não estou só no meio desses nós... Conheci há pouco, em Santiago de Compostela, um rapaz galego que fez um estágio numa universidade portuguesa. Quando fomos apresentados, ele disse: “Marcos Bagno? Pois lá em Lisboa falam mal de você”.

Eu já desconfiava, já tinha ouvido um certo zum-zum, mas agora tive a comprovação das minhas suspeitas por uma testemunha ocular e auricular. Alguns (repito: alguns) colegas linguistas portugueses se sentem muito incomodados com as coisas que escrevo em meus livros e digo em minhas apresentações públicas (em outros países, porque lá nunca falei... por que será?).

Por alguma razão misteriosa (talvez a barreira da língua?), parece que eles pensam que tenho algum tipo de indisposição ou má-vontade com relação a Portugal ou, mais especificamente, ao português europeu.

No que diz respeito a Portugal, digo logo de saída: é um país que eu adoro, um dos mais bonitos que conheço, especialmente a cidade do Porto, embora Lisboa seja irresistivelmente charmosa. E comer bacalhau todos os dias sem ter de pagar os preços histéricos que os restaurantes brasileiros cobram é um prazer sem igual. E ainda por cima com azeite português, o melhor do mundo!

Quanto à língua, tenho a impressão de que a defesa que eu e outros fazemos do português brasileiro, os argumentos que apresentamos para demonstrar que já falamos duas línguas distintas, embora muito aparentadas, fere os brios de algumas pessoas por lá.

Não sei, pode ser que exista por ali um medo (inconsciente?) de que, sem o Brasil, a ideia do “português”, assim, de forma genérica, como “língua internacional” vá pelo ralo ou que a etérea “lusofonia” fique em águas de bacalhau (eu gosto mesmo desse peixe!).

Afinal, se excluirmos os mais de duzentos milhões de falantes brasileiros, o que sobra de “lusofonia” é um punhadinho de gente que, feitas as contas, é menor do que a população da área metropolitana de São Paulo (só para constar: a Grande São Paulo tem 22 milhões de habitantes, enquanto Portugal tem pouco mais de dez milhões). E sabemos muito bem que a retumbante maioria dos povos dos outros países “lusófonos” não têm o português como língua materna, como língua da primeira e primordial socialização.

Em recente entrevista, o ministro da cultura de Cabo Verde, Abrahão Vicente, se exprimiu assim: “o nosso quotidiano é todo ele pensado, amado, sentido em crioulo, por mais que as instituições se esforcem. Uma das primeiras medidas do novo governo foi o ensino do português como língua segunda, no sentido exactamente de nós interiorizarmos o porquê de o ensino e a fluência do português estarem a perder terreno. Porque o crioulo domina o dia-a-dia, domina a música, domina as próprias instituições. O parlamento cabo-verdiano funciona praticamente em crioulo. Há uma força identitária”.

Ele bem que podia ter usado “cabo-verdiano” para se referir à língua de seu povo, já que o rótulo “crioulo” é uma herança do chamado “racismo científico” do século 19. Mas o importante é reconhecer que o português não é a língua mais importante na vida da população do arquipélago. E o mesmo se dá, certamente, nos demais países que têm o português como língua oficial, sim, porém não como língua presente de fato no cotidiano mais íntimo das pessoas, na constituição da identidade individual e comunitária dessas pessoas, em nações essencialmente multilíngues, em que as interações se dão entre indivíduos capazes de falar muitas línguas diferentes, menos a língua do antigo colonizador.

A ideia por acaso é de uma “lusofonia” composta só pelas elites letradas que falam português? Se for assim, não, obrigado, tenho nojo. Ainda mais porque nessa “lusofonia” entra uma ditadura hipercorrupta como a da Guiné Equatorial, onde nunca se falou português.

O que eu gostaria de deixar muito claro para todas as pessoas, daquém e dalém-mar, é que a nossa briga – minha e de vários outros linguistas brasileiros – não é com Portugal nem com os portugueses. Nossa militância tem como alvo a ideologia linguística obsoleta, irracional e cada vez mais fascistoide que domina a mentalidade de boa parte da escassa camada letrada do Brasil.

Lutamos contra as discriminações que usam a linguagem como instrumento para fortalecer aquele que é o pilar máximo da nossa formação social: o ódio de classe. E esse ódio de classe não é herança portuguesa, isso é conversa mole pra boi dormir: o ódio de classe é legitimamente nosso, fruto da nossa história marcada pela escravização, tanto quanto o pau-brasil e a mandioca.
Quando se discrimina uma pessoa pelo modo como ela fala, é a própria pessoa que é discriminada, violentada em sua identidade mais íntima, desrespeitada como ser humano e como cidadã(o).

Num país com 75% da população classificada como analfabeta funcional, exigir que todo mundo “fale certo”, isto é, segundo uma tradição normativa que é surda e cega para a realidade dos usos linguísticos do Brasil, é mais uma das muitas facetas de um projeto de “nação” que exclui a imensa maioria de seu povo, um projeto que perpetua a teoria e a prática escravagistas da nossa reduzida elite dominante.

Manter a população no analfabetismo pleno e funcional é um projeto, sim, e que se torna obscenamente mais explícito agora, em que uma quadrilha de criminosos e genocidas assaltou o poder e se esforça, entre outras desgraças, por redefinir o conceito – adivinhem do quê – do trabalho escravo. Não queiram falar de língua sem falar de sociedade: quem já tentou fazer isso se deu mal e bateu com a testa na parede de um beco escuro sem saída em noite de chuva.

Quando dizemos incansavelmente que é preciso reconhecer as características próprias do português brasileiro, aceitá-las como formas de falar dignas de valorização e de estudo sério, permitir que elas habitem o sacrossanto feudo da escrita, não estamos em momento algum nos contrapondo aos portugueses, nem nos ocorre o modo como falam ou deixam de falar.

Digo e repito: nossa briga é interna, é contra os que se valem de um conhecimento esotérico, de difícil acesso, para levantar muros simbólicos que deixem bem claro de que lado fica quem manda e de que lado quem deve obedecer.

Nem por isso deixo de apontar que, em muitos aspectos, reina na política linguística de Portugal um discurso, digamos assim, ambíguo. Fala-se de “português língua internacional”, fala-se de “lusofonia”, de “comunidade de países de língua portuguesa”, mas para ser professor(a) do Instituto Camões a criatura tem que ter cidadania portuguesa (tá lá no site), Portugal não reconhece o certificado brasileiro de proficiência linguística, e intérpretes brasileiros não são admitidos nas instituições da União Europeia.

Oxente, mas não é “uma mesma língua”? Ah, tá... deve ser por isso que os (poucos) filmes portugueses que passam no Brasil são devidamente legendados.

Mas o importante a enfatizar é, de novo e sempre, que a nossa briga é aqui dentro. Aqui, neste pesadelo em que o Brasil se transformou, uma briga que vai muito além da língua e nos convoca contra todas as formas de discriminação, exclusão, intolerância e violência que proliferam nesse pântano miasmático de dimensões continentais.

Quanto a Portugal, sinceramente, é com inveja que muitos de nós hoje olhamos para lá, onde as forças progressistas conseguiram vencer suas diferenças, chegaram ao poder democraticamente e estão levando o país por um caminho de paz social, autoestima e prosperidade. Talvez daqui a mais quinhentos anos a gente chegue lá também...