Marcos Bagno
Um amor babaca e fascitoide

Marcos Bagno (*) -

O episódio que envolveu a ministra Carmen Lúcia do STF a respeito da palavra “presidenta” merece um comentário. Não por causa de “presidenta”, porque já está provado e comprovado que a recusa desse termo é única e exclusivamente de ordem ideológica, não tem nada que ver com “defesa da língua”, já que a palavra está dicionarizada desde o final do século 19.

Meu interesse aqui é discutir a declaração da ministra de que “fui estudante e amo a língua portuguesa”. O que ela quis dizer com “fui estudante” não me interessa, porque, no fim das contas, não quer dizer coisa nenhuma. Quero falar do “amo a língua portuguesa”.

Já de saída vou dizendo que essa história de “amar a língua”, seja ela qual for, é de uma babaquice sem tamanho. Isso porque o que se chama de “língua” nessa frase é um construto ideológico, um artifício sociocultural, muito longe do que se entende por língua do ponto de vista das ciências da linguagem, por exemplo.

Essa “língua” que merece ser “amada” nunca é a língua que as pessoas usam a cada momento de suas vidas, inclusive quando dormem e sonham, aquele conjunto de recursos fonéticos, morfológicos, sintáticos e lexicais que permitem a interação social, o intercurso discursivo, o trabalho coletivo que é falar, ouvir, discutir, argumentar, replicar, acusar, defender, ofender, protestar, declarar, jurar, prometer, debater, seduzir, comprar, vender e tantas outras milhares de coisas que fazemos com esses recursos.

Não. A “língua” que se “ama”, nesse tipo de declaração, é uma língua imaginária, que só existe em alguma dimensão etérea, num sétimo céu aonde só se pode chegar depois de ser arrebatado por alguma entidade mística, como o apóstolo Paulo na estrada para Damasco.

Ou seja: é preciso cair do cavalo, ser bafejado pelo Espírito Santo, ficar cego e atingir a bem-aventurança absoluta. Tão imaginária que nem mesmo os dicionários e as gramáticas normativas servem de guia para quem quiser encontrá-la.

E a prova mais óbvia é justamente o termo “presidenta”. Quem tem se oposto a essa palavra diz que faz essa oposição em nome do “amor à língua”. Mas que raio de língua é essa, se afinal a palavra está registrada nos melhores dicionários de português há mais de 150 anos?

O discurso do “amor à língua” é uma dessas vitórias olímpicas obtidas pela ideologia da classe dominante, e isso faz já muito tempo. Durante mais de mil anos, desde a queda do Império Romano (século 5) até a chamada Era Moderna (século 15), a única língua que mereceu estudo, descrição, ensino e aprendizagem no mundo ocidental (isto é, na Europa) foi o latim.

Língua da Igreja, língua que conservava o saber acumulado na Antiguidade clássica (por meio das traduções para o latim da produção intelectual dos gregos), o latim permitia a comunicação entre os homens (homens mesmo!) letrados das diferentes regiões do antigo império.

A partir da Era Moderna, porém, as coisas mudaram politicamente e, claro, como língua e política andam juntas, também mudaram as circunstâncias linguísticas.

O sistema feudal já vinha sendo substituído pelos primórdios de uma economia mercantilista e, no plano político, começavam a surgir alguns Estados nacionais, unificados em torno da figura simbólica do rei. Ao mesmo tempo se iniciava a expansão marítima e o colonialismo.

Todas essas novas circunstâncias políticas, econômicas e sociais favoreceram a padronização das línguas nacionais. Para garantir a lealdade de seus súditos, o poder central transformou a língua “vulgar” em símbolo de unidade nacional.

O latim não tinha condições de atender à fórmula “uma nação, um povo, um rei, uma língua”. Justamente nesse período, e não por coincidência, surgem as primeiras gramáticas das línguas nacionais europeias: francês (1409), italiano (1437-41), espanhol (1492), português (1536), inglês (1586) etc.
 
Em todas essas obras, o discurso mais frequente é o de exaltação da beleza, da riqueza, da glória do idioma nacional e a comparação deste com o latim, para mostrar que a língua “vulgar” era tão digna de estudo e de valorização quanto a sacrossanta língua clássica, desde que fosse sujeita a um processo de elaboração consciente.

Um exemplo famoso desse discurso são os versos de Camões (Lusíadas, I, 33), em que a deusa Vênus, ao ouvir os portugueses falando, acreditou que “com pouca corrupção” aquela língua era “a latina”.

As gramáticas são logo seguidas da produção de obras de “defesa e ilustração” das potencialidades das línguas nacionais.

Em qualquer processo de padronização, a língua falada espontânea acaba se transformando num modelo idealizado de correção, construído peça por peça pelos gramáticos. Assim, paradoxalmente, a valorização da língua “nacional” diante do latim se fez pela criação de um novo “latim clássico”, de uma forma “classicizada” da língua nacional. Afinal, quem é que fala como Camões escrevia?

A nova língua padronizada tem que seduzir as massas e, ao mesmo tempo, preservar as hierarquias sociais. Assim como o latim excluía multidões inteiras do acesso à educação e ao conhecimento, a língua nacional que vai substituí-lo tem que servir ao mesmo fim.

É por isso que Pierre Bourdieu escreveu que essa “língua legítima” tem o reconhecimento das massas, mas as massas não têm o conhecimento dessa língua. Isto é: o importante é reconhecer a mesóclise como “sofisticação” e marca de distinção, e não saber realmente como empregá-la ou se foi de fato empregada “corretamente”.

É dessa longa história que surge então esse discurso (babaca!) de “amor à língua”. Discurso essencialmente elitista, reacionário, preconceituoso e, claro, balofo, sem nada que lhe sirva de estofo a não ser a ilusão ideológica.

Ele serve aos mesmos fins dos demais discursos normativos: a heteronormatividade no plano das relações sexuais, a etnonormatividade (= racismo), a normatividade de gênero (= machismo), a normatividade religiosa (= intolerância de crença) e por aí vai, e vai longe.

Declarar “amor à língua” é declarar, consciente ou inconscientemente, seu “amor” a tudo o que é repressivo, opressivo, castrador, intolerante.

O “amor à língua” é uma das múltiplas formas que assume o autoritarismo puro e simples. E, nestes tristes dias que correm, o F de STF bem que pode ser lido como “fascista”. Está aí Gilmar Mussolini Mendes que não me deixa mentir.

Fora, Temer!