O mundo e o imundo

Alexandre Ribondi –

o mundo que eu vejo,
o imundo que eu olho,
passam pela
lente da minha primeira memória:
um homem velho,
muito velho,
cansado e imóvel,
deitado numa cama,
para tossir até morrer.
Vivi muito pouco, quase nada,
ao lado do meu irmão amado,
muito amado,
porque ele era ladrão,
tinha que fugir da polícia
e não tinha tempo para mim
-mas, entre um roubo e outro,
entre uma fuga e mais uma,
ele me sorria e me beijava.
Meu doce pai,
meu muito doce pai, quis se matar
com um revólver apontado
para a cabeça cansada.
Minha mãe, minha mãe,
minha muito mãe,
me levava pela mão
aos encontros que tinha
com o amante dela,
e ele me dava dinheiro
para eu não contar nada.
Eu comprava torrones
cobertos com chocolate
com o dinheiro do amante
e foram os melhores torrones
com chocolate que já provei um dia.
Eu era o viado
que merecia o desprezo
e o riso maligno
na escola, na rua,
na igreja, nas festas de aniversário
e até os meus amigos
tinham que explicar às suas mães
que eu não oferecia perigo.
Mas, apesar de tudo,
mesmo sabendo de cada uma
das merdas que deram aroma e sabor
à minha vida,
nunca tive um momento de tristeza real,
de ódio,
ou de nota baixa na escola.
Sempre fui
aluno perfeito,
sempre fui um amargurado risonho,
um desesperado incapaz de sofrer.
Sou
superficial
para suportar a profundidade
que a tosse do velho, o mundo e o imundo
me obrigaram a ter.