A imprensa e a banalidade do mal

Dioclécio Luz (*) -

Em 1961 o jornal The New Yorker encaminhou para Jerusalém, para cobrir o julgamento do nazista Adolf Eichmann, a professora, escritora, judia e filósofa alemã, Hannah Arendt. Hannah escreveu diversos textos relatando o que viu. E ela viu o que muitos jornalistas ali não viram: que o julgamento tinha uma farsa embutida, Eichmann já fora condenado, faltava apenas a sentença. Responsável por uma logística de transporte que levou milhares de judeus - de vários países da Europa - para os campos de concentração na Polônia, para todos os efeitos Adolf Eichmann era um cara perverso.

Em seus escritos Hannah fez notar que ele era um criminoso, sim, mas o que o levou a cometer esses crimes não foi uma maldade intrínseca, e sim o fato dele querer ser um bom servidor do sistema nazista. Em outras palavras, um servidor medíocre (como foi o caso de Eichmann) banalizou o mal e seus atos geraram o massacre de judeus e comunistas. Tudo isso está no seu livro Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal.

Lembrei do livro de Hannah a propósito da cobertura da nossa velha mídia ao governo de Jair Bolsonaro. Os repórteres e comentaristas dessas ricas e velhas emissoras agem como se o fato não lhes dissesse respeito, como se fizessem parte de outro planeta; eles se acham imunes, aos ataques fascistas desse presidente. Tratam da tragédia que acontece hoje como se fosse algo banal; como se os atos do governante fossem apenas notícias incomuns. Tipo, criança nasce com sete dedos na mão; cachorro atravessa na faixa de pedestre; mulher dá à luz no táxi. Talvez tenham recebido uma ordem do tipo: vamos falar do que esse presidente faz, mas sem pontuar que é nazista ou fascista, e muito menos dizer para que não votem nele.

Toda vez que se anuncia a premiação de obras de literatura ou de ficção na TV, eu penso: dessa vez aquele jornal da TV, aquele repórter ou comentarista de política, leva o prêmio maior de ficção. Tem coisas que essa gente fala que mais parece uma viagem espacial. O contorcionismo usado indica isso. De fundo, uma farsa: a tentativa frustrada de parecer imparcial, isto é uma fake manjada. Todo mundo sabe que a Globo, Bandeirantes, SBT, Record tem posição política e econômica e ela é expressa no seu jornalismo (com ou sem aspas).

Agora, porém, a situação é especial. A crise atual do Brasil tem constantes ataques à democracia. E não é o PT quem faz isso; não é a esquerda; é o candidato Jair Bolsonaro e sua turma. Então, por que esses jornalistas não dizem essa verdade? Porque se escondem sob o falso (fake) tecido da imparcialidade? Alguém escreveu antes de mim: “perder uma eleição é normal numa democracia. O problema é perder a democracia numa eleição”.

Esses repórteres e comentaristas têm a dimensão do que está ocorrendo no Brasil? Eles sabem que há uma disputa entre a barbárie e a democracia? Eles sabem que o atual presidente defende a tortura e é racista? A resposta é uma só: sim. Afinal, eles saber ler, não são cegos nem surdos. Sendo assim por que não se posicionam contra esse genocida? Ao que parece, os donos das empresas de comunicação não querem criar um atrito maior com o governo, determinando aos seus funcionários – os jornalistas – que limitem suas críticas a alguns temas. Por exemplo, eles podem criticar o presidente por estar sem máscara, isso é legal. Também podem criticá-lo pelo desmatamento na Amazônia – isso gera empatia com a população e agrada à matriz ideológica estadunidense e europeia. Mas não podem falar mal da economia. Como essas redes de comunicação fazem parte das elites nacionais, tornaram-se porta-vozes dos interesses delas. Daí apostam nas anunciadas entregas de Paulo Guedes. Ainda faltam dois meses para Jair Bolsonaro sair, mas dá tempo de concluir a privatização das estatais, a reformas trabalhista e fiscal; conceder mais benefícios para o agronegócio. A propósito, na entrevista com Bolsonaro ao Jornal Nacional (22/08/22), William Bonner, que até então tinha sido “duro” nas perguntas, ao abordar a economia mudou o tom: agora era uma conversa de amigo para amigo. Ele perguntou algo assim:

- O senhor prometeu em campanha um dólar baixo e a queda da inflação. Não conseguiu. Mas a gente sabe que teve a pandemia e agora a guerra na Ucrânia. Se eleito o que pretende fazer?

Bolsonaro sorriu. Estava entre amigos. Agora ele poderia fazer propaganda do governo.Até as eleições de 2018 essas velhas redes de comunicação atuaram para satanizar Lula e o Partido dos Trabalhadores. E, ao fazer isso, fizeram crescer a candidatura do oponente, Jair Bolsonaro. A TV Globo, em especial, foi porta-voz da operação Lava Jato, fazendo o pior que se espera da imprensa: abandonar a capacidade de investigar para defender um projeto político. O objetivo era destruir o PT e as esquerdas. Não conseguiu destruir nenhum dos dois, mas graças ao seu trabalho de mitificação de Sérgio Moro e sua turma, Lula foi preso e não pode disputar a presidência com Jair Bolsonaro. Quanto à Lava Jato e ao trabalho de Sérgio Moro, foi tudo para o ralo graças ao jornalismo do The Intercept.

Em 2018 estava já tudo claro: um cara com propostas fascistas pretendia se eleger. Na época, corria a piada de que Fernando Haddad, se eleito não iria cumprir suas muitas promessas de campanha e cobravam isso; quanto a Bolsonaro, era o contrário, havia o medo dele cumprir o que estava prometendo. Evidente: ele anunciava um Estado fascista, antidemocrático. Os comentaristas da Globonews não viram? Se viram, porque não disseram ao povo: não vote nesse fascista? Por que até hoje insistem em dizer que as eleições estão polarizadas? Foi o patrão que mandou falar isso?

Essa ideia de “polarização nas eleições” é um engodo, uma mentira, uma fake news, devidamente difundida por esses medíocres ilustrados da imprensa. As grandes redes descobriram um jeitinho de fazer fake news. Lembra quando na pandemia, todas as noites, o Jornal Nacional criticava o presidente por não estar usando máscara? O Brasil estava virado pelo avesso em todos os setores, mas a preocupação da Globo era com a máscara do presidente. E quando ele fazia algo fora da curva (o que sempre fez) o comentarista falava que ele fez algo “polêmico”. E o mal era banalizado.

Fico imaginando como essas grandes redes anunciariam a ascensão de Hitler na Alemanha. Em rede nacional o repórter diria algo do tipo:

- Hoje, 30 de janeiro de 1933, a Alemanha tem um novo chanceler, Adolf Hitler. Artista plástico e ex-combatente da primeira guerra, Hitler assume o cargo como representante do Partido Nazista, o Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei. Antes de chegar ao cargo de chanceler, ele foi preso e condenado a cinco anos de prisão por tramar um ato terrorista contra o Estado. Ficou somente nove meses na cadeia. Lá escreveu um livro, Mein Kampf, uma espécie de autobiografia onde anuncia fazer campanhas de extermínio de comunistas e judeus. Hoje pela manhã Hitler não quis falar com os jornalistas, mas, anunciou aos seus seguidores que vai colocar em prática um grande plano de desenvolvimento da economia germânica, algo muito além do que cogitou o antigo Partido dos Trabalhadores, “promotor da corrupção”, disse ele. Depois conversei com o presidente da Federação das Indústrias. Em suas palavras, abre aspas: “agora sim, com Hitler finalmente temos um Estado forte que valoriza o mercado”. Fecha aspas. Perguntei se o mercado não via alguma falha nessa proposta. Ele sorriu e comentou: “Nenhuma falha. O único problema é o bigodinho dele, é ridículo”. Eu tive que rir da piada também.

A verdade é que essa velha imprensa engole o sujeito que anuncia um país fascista, mas não admite que se toque no interesse das elites deste país, inclusive as elites golpistas. No dia 30 de agosto a TV Bandeirantes fez editorial criticando o ministro Alexandre de Moraes por mandar investigar os empresários que, no grupo de WhatsApp, anunciavam que iriam fazer o sangue rolar nas ruas caso Lula se elegesse. Tramar um crime contra o Estado – golpe ou “apenas” matança de gente – é crime. Mas a velha imprensa releva. Coube a Eduardo Oinegue, funcionário da empresa, fazer a leitura emocionada desse editorial em defesa dos empresários. O texto reconhece que tramar um crime é crime, mas faltariam provas. Não considerou os dirigentes da Band que a Polícia Federal fez busca e apreensão na casa de seus amigos (ou clientes?) em busca de provas.

Confesso que tinha uma esperança de que os donos desses grandes veículos tivessem aprendido alguma coisa e fizessem editoriais dizendo para a população não votar nesse fascista. Errei feio. É da natureza dessas elites da comunicação acatarem qualquer governo, contanto que lhes garanta os privilégios, tire benefícios do trabalhador, reduza o Estado, e, claro, garanta uma economia que aumente mais ainda seus ganhos. Não podemos esquecer que boa parte dos golpes civis-militares havidos no Brasil foram tramados por essa gente ou seus ancestrais. Por que agora seria diferente?

O fato é que eles estão acostumados com a banalização do mal. Durante a ditadura de 1964 a censura vetava notícias sobre a tortura e desaparecimento de pessoas, isso incomodou muitos jornalistas, mas incomodou os patrões? É preciso lembrar que os grandes veículos de comunicação tinham parceria com os militares. O SBT de Silvio Santos e a Globo de Roberto Marinho, por exemplo, veiculavam programas que louvavam o governo. Em 1984 a Globo omitiu a campanhas das Diretas já. Na época uma reportagem fake da emissora mostrou milhares de pessoas nas ruas de São Paulo e disse que elas estavam ali para comemorar o aniversário da cidade – mentira, estavam na campanha pelas Diretas.

Os generais ditadores se davam muito bem com a Globo. O general Médici, um dos presidentes mais cruéis do regime, chegou a manifestar sua simpatia pela programação do jornalismo da emissora. Conforme o site Viomundo ele disse:

- Sinto-me feliz todas as noites quando ligo a televisão para assistir ao Jornal Nacional. Enquanto as notícias dão conta de greves, agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranquilizante após um dia de trabalho.

O compadrio da Globo com as Forças Armadas vem de longa data, e ele sempre fica mais forte quando se anunciam golpes. A história de 1964 é conhecida – dezena de anos depois (!) a Globo até pediu desculpas por ter se juntado aos golpistas. Não adiantou nada. Em 2013 um novo golpe começou a se articular nas ruas e a Globo cuidou de mostrar (destacando as manifestações nos seus noticiários) de que lado estava: contra Dilma Rousseff. Que eu saiba, nenhum repórter da emissora foi apurar como surgiu e quem bancava as muitas faixas pedindo intervenção militar – isto é, o golpe. Em 2016, Dilma cai e Temer assume dando início a tal intervenção militar e pela primeira vez na história o ministro da defesa é um general. Para saber mais sobre a recente relação de governo com militares, sugere-se a leitura do livro de Natalia Viana, Dano colateral.

Em 2018 as elites do país tinham um problema: apesar da Lava Jato ter feito a sua parte, passando por cima do processo penal, o povo ainda queria Lula presidente. Mesmo preso ele ainda liderava as pesquisas. No dia 4 de abril o STF iria julgar um habeas corpus de Lula. O pedido de liberdade para Lula tinha como base o inciso LVII do Art. 5º da Constituição, ao estabelecer que: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A defesa de Lula não contava com um inimigo: as Forças Armadas. Não levaram em conta que até hoje os oficiais são formados para defender o neoliberalismo, a empresa privada e o mercado; são treinados para combater o inimigo interno - as esquerdas!  Então, ameaçaram: se o STF soltar Lula o Exército vai para ruas. Não com essas palavras, claro.

De qualquer forma, era preciso que os ministros do STF tomassem conhecimento dessa ameaça. Como fazer isso? Ora, recorrendo à velha aliada: a TV Globo. E na noite do dia 3 de abril de 2018, vésperas da votação do pedido de habeas corpus de Lula, William Bonner encerrou a edição do Jornal Nacional com uma notícia de “última hora”. Qual a notícia? A ameaça do Exército encaminhada via tweet. Bonner leu a mensagem do general Villas Boas, comandante do Exército, onde ele diz que repudia “a impunidade” (decisão de libertar Lula) e que o Exército “está atento às suas missões constitucionais”.

Deu certo. No dia seguinte o STF negou o habeas corpus e Lula continuou preso. Ufa, as elites nacionais, a TV Globo e as demais redes, respiraram aliviadas. Lula não seria presidente.

Cumplicidade. Sim, o país elegeria um fascista e os militares ocupariam o governo como anunciado; agora seria mais fácil comprar armas, os atos de racismo seriam referendados pelo novo governo, jornalistas seriam xingados diariamente, a Amazônia seria queimada, haveria mais casos de LGBTfobia e o machismo seria estimulado. Tudo bem, o importante era que o plano econômico de Bolsonaro e seus militares serviria aos propósitos dessa elite. Podem atacar a democracia e os direitos humanos; a economia sempre faz a felicidade do mercado.

É o que importa. Porque se essa imprensa e seus funcionários fossem contra o fascismo e estivessem de fato preocupados com a saúde da democracia já em 2018 pediriam à população para que não votasse em Bolsonaro. Não fez isso em 2018 e tampouco em 2022. Hoje como ontem, os comentaristas políticos dessas empresas falam que os dois lados produzem fake news; dizem que a campanha está polarizada; dizem que está uma baixaria; dizem que a campanha se tornou violenta. Tudo isso são fakes criadas por essas redes. Porque, se fossem honestos com a história, diriam: antes de Bolsonaro não existia nada disso; quem trouxe isso para a campanha foi Bolsonaro e sua turma; não foi a esquerda, nem o PT. Mas aí seria querer demais desses funcionários exemplares.

Essa gente, no fundo, são funcionários medíocres. São os medíocres ilustrados: o discurso arrogante dá a entender que entendem muito do processo político, mas ao final sucumbem ao lugar comum. Ao banalizarem o mal visível e palpável, assinam o nome no lado sujo da história.

Ao banalizarem o mal, tratando os atos fascistas do presente Bolsonaro como exagero ou abuso, ou mesmo “polêmicos”, falam meias-verdades, mentem para a população. Eles sabem, há muito tempo, que esse governo mantém uma relação íntima com o fascismo e o nazismo, mas reagem como se isso fosse algo corriqueiro, banal.

Ainda recentemente a jornalista Milly Lacombe, do UOL, fez uma live listando as dezenas de vezes em que o presidente mostrou sua face nazista. Na verdade, ela apenas resgatou informações para que ninguém esquecesse. Os comentaristas políticos da Globonews – apenas para citar uma emissora - não sabiam disso? Instalados naquela bolha situada entre Marte e Vênus, diante de um espelho de cristal, esboçam o desprezo de Narciso pela situação nacional. Eles sabem que, passada a tormenta, com ou sem Bolsonaro, a empresa em que trabalham vai estar numa boa com o novo governo. E se Bolsonaro cair como esperado, então, só então, dirão a verdade sobre ele. Covardia? Claro.

Nesse ponto é preciso apontar que fora da grande imprensa há muitos e muitas jornalistas, influenciers, estudiosos, movimentos, enfrentando essa figura nefasta. Essas pessoas estão dizendo: quem trouxe as fake news para a campanha, quem incitou e incita os militantes à violência, quem incentiva as agressões à democracia, é Jair Bolsonaro, não é o PT, não é Lula.

Nesse momento, mulheres corajosas do jornalismo, estão enfrentando esse o genocida como ele merece ser enfrentado – sem rodeios, sem enrolação. É preciso coragem para dizer o que elas dizem.

Entre tantas, cito quatro grandes mulheres jornalistas: Milly Lacombe, Natália Viana, Eliane Brun, Cristina Serra. Há ainda aquelas que atuam na Agência Pública e no The Intercept; as que estão nas redes de mulheres da comunicação do Nordeste (Catarse, entre outras); redes de mulheres negras; e mesmo na revista Piauí. Cada vez que um homem ou uma mulher se cala ou esconde a verdade sobre esse presidente, ou compara seus atos com os de Lula como se fossem do mesmo nível, está atacando as mulheres, os negros e as negras, os do movimento LGBTQIA+. A omissão é uma posição.

No dia 30 de outubro o brasileiro não vai decidir quem vai governar a nação. A escolha é entre dois sistemas de governo: a barbárie ou a democracia. Como bem resume a jornalista Milly Lacombe: quem defende Bolsonaro não defende um político, mas um fascista, e se iguala a ele. Eu complementaria: quem insiste em igualar os dois candidatos, ciente de que são distintos em caráter e propostas, está banalizando mal; está tomando uma posição pelo criminoso. Esses jornalistas não são nazistas ou fascistas, mas acabam servindo a isso. E Hannah Arendt já mostrou no que isso vai dar.
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(*) Dioclécio Luz é jornalista e escritor. Tem mais de dez livros publicados. Em novembro lançará em Brasília seu mais novo livro: A escola do medo - vigilância, repressão e humilhação nas escolas militarizadas.