Brasília, mais um ano… a cada novo aniversário, a cidade inventada vai se tornando mais orgânica. Como dizia seu criador, abandona a redoma e deixa de ser “flor de estufa”. (Foto: Marília Panitz)
A cidade nova... pela janela

Marília Panitz (*) –

O prazer que há em viajar dentro do próprio quarto está a salvo do ciúme inquieto
dos homens; ele tampouco está ao sabor da fortuna.
Haverá, com efeito, criatura tão infeliz, tão abandonada que não lhe reste um reduto para o qual
possa se retirar e onde possa se esconder do mundo?
Não é preciso outra coisa para dar início à viagem.

Xavier de MaistreViagem ao redor do meu quarto

Quando Brasília completou sessenta anos, estávamos no início da pandemia e do consequente confinamento (pelo menos nós, que acreditamos na ciência e que temos um mínimo garantido para que possamos nos isolar). Ao invés da festa que ressalta a escala monumental da cidade, comemoramos de dentro de casa, na escala residencial, como é definida pelo poeta Lucio Costa (as outras são a gregária e a bucólica, que atravessa as demais e da qual usufruo, de meu posto de observação). O que nos unia então, ao festejo tradicional, que ressalta os seus maiores ícones, de certa forma, os criadores de identidade da capital, para quem não vive ou viveu nela, era o céu. Quem mora aqui tem efetivamente o céu por companhia (minha filha, moradora de São Paulo, sempre manifesta sua saudade com essa frase: “que falta me faz esse céu”).

A circunstância da quarentena mudou meu olhar sobre Brasília, depois de cinquenta anos de convivência. Acostumada a dominar suas ruas largas, seus jardins, seus cantos ligados à minha prática de ensino e curadoria de arte… ou a vê-la de cima, nas inúmeras chegadas e partidas, passei a ver a sua vida pela janela.

O tal momento de emoldurar-se no marco entre o dentro e o fora sempre me remete ao interior do Brasil, ao profundo de nossa cultura – e não foi na abissal profundeza do país-continente que o “avião-borboleta” pousou, para inaugurar um novo centro de decisões do país? –, esse lugar de troca rápida, de informação em pequenas pílulas (ao contrário das visitas), de ver o movimento, se inteirar “das modas”. Também fora do Brasil, a imagem dos confinados interagindo pelas janelas, em uma Itália devastada pelo vírus, correu mundo.

Mas não é esta a janela modernista, a janela do Plano Piloto. Esta é solitária. O meu horário de janela tem sido, neste um ano e um mês, o fim da tarde, quando acompanho o espetáculo celeste por trás e acima da arquitetura de minha quadra. E o que se apresenta para mim é sutil, cheio de detalhes poéticos que se entregam aos poucos, já que minhas janelas são voltadas para o nascente. É no amanhecer que o espetáculo de cores se apresenta em toda a sua magnitude, mas aí eu não o vejo, a não ser nas noites insones – como para Clarice Lispector, Brasília, algumas vezes, é a minha insônia.

Minha prática cotidiana (recém descoberta) de amor à cidade pelo seu ângulo mais discreto, se aproxima muito mais do método da personagem Auggie, do filme Cortina de Fumaça de Jim Jarmusch e Paul Auster.

Todos os dias, à mesma hora, da mesma janela, com os mesmos enquadramentos, capturo imagens do entardecer. Como ele diz a seu espantado interlocutor: “São todas iguais, mas cada uma é diferente de todas as outras. […] É isso que recomendo. Sabe como é. Amanhã, depois de amanhã e sempre… o tempo se arrasta com seu passo miúdo”. Agora, com um ano completado nesse exercício, talvez eu faça, como Auggie, um álbum das mesmas fotos diversas – para serem vistas uma após a outra, minha contagem de tempo.

O que chama a atenção dos moradores de cidades tradicionais ou daqueles que daqui partiram e descobrem essa falta, é a visão panorâmica que as superquadras proporcionam a seus moradores. Essa ideia inovadora de posicionamento dos edifícios e seu gabarito máximo de seis andares impedem os “emparedamentos” da organização urbana de grandes centros. A grande descoberta do pensamento modernista em termos de urbanismo (que remonta às indicações da Carta de Atenas) é esta garantia de um espaço – mesmo entre prédios – para buscar o horizonte.

Eu que venho do sul do Brasil e sou de família da região de fronteira com o Uruguai, tenho predileção por essa linha reta no encontro do céu com a terra. A paisagem da campanha gaúcha é das mais belas que conheço. O que não implica um desamor às montanhas (como poderia?); nada, porém, se iguala a este lugar para descansar os olhos. E o planalto central, com outra configuração e outro bioma, me restitui isso… daqui da minha janela!

Em abril, comemorarei o aniversário de Brasília, através da janela. Estar em casa me ensinou a olhar o que já tenho visto distraidamente por cinquenta anos: que o monumental e o mínimo são versões de uma mesma proposta de vivência do espaço, sob o mesmo céu e sobre a mesma planura.

Viva Brasília, por mais um ano… a cada novo aniversário, a cidade inventada vai se tornando mais orgânica. Como dizia seu criador, abandona a redoma e deixa de ser “flor de estufa”.

E eu vejo isso emoldurada pela minha janela…
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(*) Marília Panitz é graduada em Artes Plástica, mestre em História da Arte, curadora e professora universitária. Busca sempre o horizonte em sua vida e, nessa pandemia, a janela é recurso de resistência, beleza e arte.

(Texto publicado originalmente no site Maria Cobogo).