Este é o “estudo” apresentado por Oscar Niemeyer que não foi validado pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo
Museu Nacional da Bíblia: arquitetura, entre a laicidade e o fundamentalismo

Fabiano Sobreira (*) –

A separação entre Estado e religião é um princípio estabelecido desde os movimentos iluministas e revolucionários do século XVIII. A laicidade foi um dos pilares da Revolução Francesa, cuja Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) já estabelecia a premissa de que a política não deveria se confundir com a crença. O Estado laico não é contrário à religião; apenas define que a crença (ou descrença) é uma manifestação de cada indivíduo, e deve ser respeitada, como direito do cidadão.

O Brasil é, oficialmente, um Estado laico, desde a fundação da República (1889). Na Constituição de 1988 a separação entre religião e política é ressaltada no Artigo 19, segundo o qual é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, ou subvencioná-los.

Nesse sentido, o que significa – no atual contexto – a promoção de um concurso de arquitetura (Edital 22/2020 – SECEC/DF) para a construção, na capital do país, do Museu Nacional da Bíblia, financiado por recursos públicos ?

Sob a perspectiva do Estado laico, estabelecida na Constituição Federal, não cabe ao poder público financiar igrejas ou espaços de culto e de celebração de uma religião específica. Construir um museu dedicado ao livro sagrado da religião cristã é uma iniciativa que entra em conflito com esse princípio republicano. De acordo com declarações das autoridades responsáveis pela iniciativa, no Distrito Federal, não se trataria de um “templo religioso”, mas de um espaço dedicado a uma obra que é uma expressão cultural da sociedade. Sob essa perspectiva, seria mais apropriado pensar em um espaço destinado a celebrar – enquanto expressão cultural – a sacralidade em diversas religiões. Afinal, a escolha de uma, entre diversas manifestações religiosas, entra em conflito com o mesmo artigo do texto constitucional, segundo o qual é vedado ao Estado, no que se refere à religião, “criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”. Assim como a Bíblia é o livro sagrado dos cristãos, o Alcorão é o livro sagrado do Islã, o Torá é o texto central do Judaísmo, os Vedas para o Hinduísmo, o Tripitaka para o Budismo, entre outros textos sagrados, além de toda a tradição oral da sacralidade dos povos originários e das religiões de matriz africana. Todas essas manifestações, inclusive a opção por não segui-las, caracterizam a diversidade cultural brasileira, em especial na sua capital.

Fundamentalismo - No que se refere ao aspecto político, é importante contextualizar que tal iniciativa (o Museu Nacional da Bíblia) tem o apoio de grupos que fazem interpretações fundamentalistas do referido texto sagrado cristão, para justificar ações misóginas, homofóbicas, racistas, totalitárias, de alienação social e de violência contra os praticantes de outros credos. Entre 2016 e 2019 foram registrados no Brasil mais de 1.100 casos de intolerância religiosa, principalmente contra as manifestações de matriz africana. Enquanto em 2015 foram registrados 179 casos, em 2019 o número de denúncias dobrou: 354 registros.

Ainda que a iniciativa fosse reformulada em sua temática, a fim de não afrontar os princípios do Estado laico e ainda que os interesses políticos envolvidos fossem revistos e não acolhessem grupos fundamentalistas, resta ainda uma questão: a pertinência do investimento de mais de 20 milhões de reais em um equipamento cujo interesse público é questionável, diante de um cenário de pandemia e de escassez de recursos: as escolas públicas não dispõem de estrutura para acolher alunos e professores com segurança; milhares de pessoas estão desabrigadas, sem moradia e sem condições sanitárias mínimas; faltam leitos e oxigênio nos hospitais.

Totalitarismo teocrático - A iniciativa de construção de um Museu Nacional da Bíblia, financiado com recursos públicos, na capital do país, utiliza como estratégia o concurso (instrumento que, assim como a laicidade, faz parte do conjunto de princípios defendidos pelos iluministas). Dessa maneira, tenta revestir de uma imagem democrática e republicana uma iniciativa que em sua origem tem bases totalitárias e teocráticas; tenta atribuir teor cultural e de amplo interesse público ao que, em essência, é um equipamento que serve aos interesses de grupos restritos e intolerantes, e não à diversidade.

A iniciativa apenas reforça a importância de se compreender a Arquitetura como uma expressão da ética, para além das questões estéticas. A promoção e o projeto desse equipamento público (assim como a recusa em participar de tal iniciativa) passam, necessariamente, por uma tomada de posição política, entre a laicidade e o fundamentalismo.
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(*) Fabiano Sobreira, arquiteto e urbanista, editor de www.concursosdeprojeto.org