O filósofo argentino Mario Bunge admitiu que “a dialética nos ensinou a desconfiar da quietude – que pode ocultar o conflito – e do equilíbrio. Ela nos ensinou que nem toda luta é ruim: algumas podem resultar em coisas novas e melhores”
Engels: o comunista que gostava de caçar raposas

J. L. Cindra (*)  -

Friedrich Engels nasceu em Barmen, na Alemanha, em 28 de novembro de 1820 e morreu em Londres, em 5 de agosto de 1895. O trabalho de Engels só foi interrompido quando ele estando acometido por um câncer de esôfago fulminante, veio a falecer logo em seguida. Ele era oriundo de uma próspera família burguesa, em que predominava um protestantismo rígido; seu pai era dono de fábricas de tecelagem em Barmen e em Manchester, na Inglaterra. Engels nem chegou a concluir seus estudos formais, pois seu pai, esperando que ele fosse dedicar aos negócios de suas empresas, cedo o orientou no sentido da prática direta nos assuntos comerciais. Suas contribuições ao materialismo, ao socialismo e ao marxismo são notáveis, mas geraram polêmicas acirradas entre marxistas das mais variadas tendências.

O primeiro encontro entre Marx e Engels se deu em Colônia, no ano de 1842, Marx era redator de um jornal liberal nessa importante cidade alemã e Engels se dirigia à Inglaterra, para treinamento de negócios na firma Ermen & Engels, em Manchester.

Na realidade, Engels já havia se tornado um comunista antes de Marx. Os biógrafos de Engels afirmam que neste primeiro encontro, Engels não causou grande impressão em Marx. Em Colônia, Engels também encontra com o comunista alemão Moses Hess. Hess era adepto de uma concepção de comunismo utópico, em que o importante não era a ideia de luta de classes, mas a concepção feuerbachiana de que a questão fundamental era a supressão da alienação. Mas, enquanto, para Feuerbach, a alienação primordial era causada pela religião, para Hess seria aquela que engendra o regime de propriedade privada.

Em 1844, quando retornava da Inglaterra, com destino a Barmen, Engels encontra novamente com Marx em Paris. Desta vez as impressões de Marx sobre Engels foram tão boas que eles se tornaram amigos e companheiros de luta em prol da revolução proletária, pelos quarenta anos seguintes.

Vivendo e trabalhando em Manchester, Engels trava conhecimento com Mary Burns, uma irlandesa do meio operário, o que lhe propiciou um conhecimento abrangente da situação da classe operária inglesa. Quando ele, em 1844, a caminho da Alemanha, encontra Marx em Paris, tinha tudo para escrever A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Em alemão, o livro veio a ser publicado em 1845, mas sua tradução para o inglês só aconteceu oitenta anos depois.

Em colaboração com Marx, surgiram alguns livros que serviram de fundamento para a doutrina comunista, superando assim o socialismo utópico anterior. O primeiro livro escrito por eles foi A Sagrada Família, publicado em Frankfurt-am-Main, em fevereiro de 1845. O título do livro era uma crítica sarcástica aos hegelianos alemães que faziam muito barulho, com sua crítica à religião, mas isso tinha pouco efeito prático, porque eles não entendiam nada de luta de classes. O segundo livro oriundo dessa parceria foi A Ideologia Alemã, escrito em 1846, quando Marx vivia em Bruxelas e era então editor do Rheinische Zeitung, mas o livro não foi publicado em vida de Marx e Engels.

Tão logo Engels começa a sua colaboração com Marx em 1844, eles passam a fazer parte da Liga dos Justos, que mais tarde viria a se denominar Liga dos Comunistas. Em fevereiro de 1848, às vésperas das revoluções que varreram a Europa naquele período, Marx e Engels publicam o célebre Manifesto do Partido Comunista.

Em 1849, Marx e sua família passam a viver em Londres, enquanto Engels passa a viver permanentemente em Manchester, de 1850 até 1870, quando ele muda definitivamente para Londres. A colaboração entre Marx e Engels foi intensa e abrangente por toda a vida, desde 1844. É importante ressaltar que Engels soube levar uma vida dupla na Inglaterra. Ao mesmo tempo que ele era gerente de fábrica, herdeiro de sua rica família, um verdadeiro gentleman inglês, frequentava os clubes da alta burguesia e participava da caça à raposa, chegou a ser membro do Schiller Instituto de Manchester, mas todo seu esforço era em prol da emancipação dos trabalhadores e do socialismo.

As obras - Passo agora a fazer referências às obras escritas exclusivamente por Engels, em sua fase madura. Um importante livro foi o Anti-Dühring, escrito entre 1876 e 1878. O livro surgiu porque Marx e Engels acharam necessário fazer uma crítica demolidora às concepções do professor Eugen Dühring, a fim de combater suas pretensões de ter elaborado uma teoria muito abrangente e definitiva para o socialismo, rejeitando assim as concepções de Marx e Engels.

Entretanto, do ponto de vista deles, o que Dühring escreveu não passava de textos ecléticos e pretenciosos, muitos deles visando a fornecer teorias universais e absolutas.  O problema é que a doutrina de Dühring estava influenciando vários representantes do Partido Socialdemocrata Alemão. Já no Prefácio à edição de 1885, dois anos após a morte de Marx, Engels escreve que lera para Marx todo o manuscrito do Anti-Dühring, antes de sua primeira impressão em 1878.

Além disso, o Capítulo X fora escrito pelo próprio Marx. Nesse Prefácio, Engels escreve que o conhecimento da matemática e da ciência natural é essencial para uma concepção da natureza que é dialética e ao mesmo tempo materialista. Marx era versado em matemática, diz ele, mas em relação à ciência natural só tínhamos conhecimento fragmentado, intermitente e esporádico. Ele também reconhece que os progressos na ciência são tantos que, possivelmente seu trabalho tornará supérfluo em grande parte, ou em sua totalidade. Lembrando da lei da conservação e da transformação da energia, ele disse que há uns dez anos era somente a conservação da energia que era   enfatizada, mas agora, cada vez mais se valoriza a ideia de transformação da energia.

Vivendo em Manchester, Engels travou conhecimento e fez amizade com um importante químico orgânico alemão que também vivia nessa cidade. Tratava-se de Carl Schorlemmer (1834 – 1892), que além de químico, era também comunista atuante, por isso ele foi chamado de o “químico vermelho”. Foi por meio desse amigo, que Engels aprendeu muito de química orgânica. Engels foi durante toda a sua vida um autodidata, que passou a adquirir um conhecimento enciclopédico em vários assuntos.

Além disso, Engels tinha um bom conhecimento da arte militar, havendo ele inclusive na juventude participado de combates nas guerras da revolução de 1848 e 1849, na Alemanha. A derrota dessa revolução fez com que Engels tivesse que refugiar permanentemente na Inglaterra.

Na Introdução de Anti-Dühring, Engels escreve que o grande mérito de Hegel foi ter apoderado da dialética como a forma mais elevada de se raciocinar. Os antigos filósofos gregos eram todos dialéticos naturais, e Aristóteles, o intelecto mais enciclopédico entre eles, já havia analisado as formas mais essenciais do pensamento dialético. O começo das ciências naturais exatas teve lugar com os gregos do período alexandrino, e mais tarde, na Idade Média, pelos árabes.

No Capítulo XI, intitulado Moralidade e Lei, Liberdade e Necessidade, Engels escreve: Hegel foi o primeiro a estabelecer corretamente a relação entre liberdade e necessidade. Para ele, a liberdade seria a consciência da necessidade. A concepção de Hegel era que a necessidade é cega apenas enquanto ela não é compreendida.

No Capítulo XII, Dialética, Quantidade e Qualidade, Engels discute sobre as contradições, que metafísicos como Herr Dühring não compreendem. O movimento mesmo já é uma contradição. Engels faz ainda um comentário sobre a presença da lei da passagem da quantidade para a qualidade, nas séries de carbono (metano, etano, propano, etc).

No Capítulo XIII é que Engels mostra a importância da lei da negação da negação

Ele ressalta que essa lei, como todas as leis da dialética, age na natureza, na história e no pensamento.  Nos processos geológicos, na matemática superior, na biologia, na sociedade humana, por toda a parte, está presente a lei da negação da negação. Ele escreve que a dialética não é nada mais que a ciência das leis gerais do movimento e desenvolvimento da natureza, da sociedade humana e do pensamento.

A Dialética da Natureza é outro livro de Engels onde se trata da dialética hegeliana aplicada à natureza. Bem no início da década de 1870, Engels dá início a seus estudos sobre dialética e as ciências da natureza. Esse trabalho só foi interrompido com a morte de Marx em 1883. Engels teve que preparar os manuscritos de Marx, para a publicação do Segundo e Terceiro volumes de O Capital (Das Kapital). Marx, em vida, só conseguiu publicar o primeiro volume de O Capital, em 1867. Após a morte de Engels, em 1895, os manuscritos da Dialética da Natureza ficaram enterrados por trinta anos nos arquivos do Partido Socialdemocrata da Alemanha, sob auspícios de Eduard Bernstein. A obra só veio a ser editada em alemão e russo em 1925. Quando, finalmente, Dialética da Natureza apareceu em inglês, em 1940, como disse J. B. Foster, os cientistas marxistas britânicos tomaram conhecimento dela e se sentiram como patos na água. John B. Foster é autor de vários trabalhos sobre a ecologia, do ponto de vista marxista.

Na Dialética da Natureza, Engels apresenta as três leis da dialética, segundo ele, elas já estavam presentes na Lógica de Hegel, porém de modo confuso e mistificado, devido ao idealismo que anima a sua filosofia. Essas leis são: a) a lei da passagem da quantidade para a qualidade e vice-versa; b) lei da união e luta dos contrários; c) lei da negação da negação. Engels discute sobre as formas de movimento da matéria e muitos outros assuntos. Na Dialética da Natureza está incluído, inclusive, um capítulo em que Engels trata de um assunto que hoje seria um tópico da ecologia. É onde ele discute a importância do trabalho para a formação do homem, evoluindo a partir de outros primatas. Ele, então, discute a questão da relação entre o homem e a natureza.

“Não fiquemos demasiado lisonjeados com nossas vitórias humanas sobre a natureza”, escreve ele. Esta se vinga de nós por toda vitória desse tipo. Cada vitória até leva, num primeiro momento, às consequências com que contávamos, mas, num segundo e num terceiro momentos, tem efeitos bem diferentes, imprevistos, que com demasiada frequência anulam as primeiras consequências. As pessoas que acabaram com as florestas na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e em outros lugares para obter terreno cultivável nem sonhavam que estavam lançando a base para a atual desertificação dessas terras, retirando delas, junto com as florestas, os locais de acúmulo e reserva de umidade.

Dois outros livros de Engels, ambos publicados após a morte de Marx, são A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, publicado em 1884 e Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, publicado em 1886. Além desses livros, Engels ainda conseguiu preparar para publicação os segundo e terceiro volumes de O Capital. Levando em conta que a caligrafia de Marx era muito ruim, só mesmo Engels para dar conta desse trabalho estafante, mas ele o conseguiu.

Nos últimos anos de vida, Engels ainda deu uma grande contribuição para a consolidação do movimento operário na Alemanha. Engels pôde viver um período em que o socialismo de inspiração marxista se transformava em um grande movimento de massas sob a liderança do poderoso Partido Socialdemocrata da Alemanha (SPD), e, em 1889, em Paris, era fundada a Segunda Internacional.

Tudo isso faz de Friedrich Engels uma figura de primeira grandeza no tocante à contribuição que ele deu para o estabelecimento do que viria a se chamar de marxismo. Mas, mesmo assim, muitos são os que querem fazer crer que Engels deturpou o pensamento de Marx, chegando ao ponto de dizer que ele traiu as ideias de Marx, mas isso não parece ser verdade.

Vejamos agora alguns comentários sobre as atividades de Engels no contexto da filosofia marxista. Os chamados marxistas ocidentais (G. Lukács, K. Korsch, H. Marcuse, J. P. Sartre, T. Adorno, L. Goldmann, L. Colletti e outros) negam a existência de uma dialética na natureza, negam a existência do materialismo dialético, aceitando apenas o materialismo histórico.

A culpa é de Engels, dizem eles, que, no espírito hegeliano, viu uma dialética na natureza. Para esses autores, ´’só existe dialética na sociedade e na relação do homem com a natureza, mas nunca na natureza mesma”. Eles culpam Engels de metafísica, dogmatismo naturalista, ecletismo, positivismo e mais coisas. Eles alegam que, com base nos escritos de Engels, principalmente na Dialética da Natureza, os soviéticos formularam as disciplinas materialismo dialético e materialismo histórico, estranhas ao pensamento de Marx.

Em outras palavras, eles querem dizer que Marx só reconhecia o materialismo histórico, mas nunca o materialismo dialético. Entretanto, é bom lembrar, que uma obra tão importante para a concepção dialética do mundo, como é o Anti-Dühring, foi escrita por Engels, tendo todo o consentimento de Marx, pelo menos é o que parece ser. A Dialética da Natureza, sim, ela só foi publicada postumamente, muitos anos após a morte de Engels. Mesmo assim, muitos tópicos neste último livro, concordam plenamente com o que já havia sido escrito em Anti-Duhring. Na minha modesta opinião, as críticas feitas a Engels, alegando que ele deturpou o conteúdo da doutrina de Karl Marx, de um modo geral, não procedem.

A outra versão, a versão do chamado marxismo ortodoxo ou marxismo soviético, ressalta exatamente o oposto do que afirmam os “marxistas ocidentais”.  Segundo a doutrina outrora predominante na URSS, e, de um modo geral, nos partidos comunistas, existe uma absoluta identidade ou homogeneidade entre os pensamentos de Marx e Engels.  A meu ver, a deficiência do “marxismo ortodoxo” não é o fato dele não ver discrepâncias entre as concepções de Marx e Engels. O único erro grave foi talvez a canonização das obras de Marx e Engels.

No que diz respeito especificamente ao livro A Dialética da Natureza, podem existir, de fato, algumas dificuldades na questão da interpretação do pensamento de Engels, por se tratar de uma obra inacabada. O que Engels nos deixou foram notas e esboços de temas incompletos, que foram compilados pelos editores do manuscrito em 1925, enquanto o livro resultante passou a ser considerado um clássico do marxismo-leninismo, e, em seguida, canonizado, por assim dizer, segundo a Weltanschauung que estava sendo consolidada na URSS.

O erudito turco, Kaan Kangal, em 2020, escreveu um bem fundamentado livro sobre Engels e a Dialética da Natureza. Ele ressalta que os manuscritos de Engels eram ainda um texto inacabado, que deve ser lido com muito cuidado, porque as intenções e motivações de Engels ao escrever as notas e esboços que ele nos deixou, muitas vezes não foram bem compreendidas.

Portanto, Kangal acentua o caráter inacabado de Dialética da Natureza, é o que ele chama de teorema de incompletude, ao se referir a esse livro. Segundo ele, é preciso estudar a fundo o contexto em que Engels trabalhou. É conveniente, inclusive, esclarecer alguns aspectos da dialética, levando em conta a crítica da lógica de Hegel, feita na Alemanha, por Adolf Tredelenburg, Eduard.von Hartmann e outros. Esta crítica envolvia as relações entre Hegel, Aristóteles e Kant. Seria ainda conveniente, segundo Kangal, levar em conta o darwinismo que se difundia na época e os estudos de outros materialistas, tais como Ludwig Büchner, Karl Vogt e Jacob Moleschott, os chamados materialistas vulgares mecanicistas pelos clássicos do marxismo.

Michael R. Krätke, por outro lado, escreveu que não haveria Marx sem Engels. Sem Engels, Marx não teria sobrevivido no exílio britânico, senão que teria sucumbido nesse exílio, junto com sua mulher e filhos. De fato, sem o apoio financeiro de Engels, Marx dificilmente teria escrito Das Kapital. Além disso, Engels pode ser considerado o primeiro marxista, o homem que inventou o marxismo.

Ao que parece, muitos dos detratores de Engels têm é inveja dele, visto a importância que ele adquiriu ao lado de Marx, e ainda mais, depois de sua morte.  Mas devido à modéstia de Engels, ele sempre se considerou “o segundo violino”. Outros que procuram encontrar discordâncias entre os pensamentos de Marx e Engels, pelo menos durante o período de existência da URSS, tinham motivações políticas, cujo intuito era causar dúvidas e desconfianças no seio do marxismo-leninismo, a doutrina política oficial da URSS e do Movimento Comunista Internacional. 

O filósofo argentino Mario Bunge (1919 – 2020), apesar de não ser muito simpático à dialética de Engels e ao materialismo dialético, mesmo assim ele concedia uma certa credibilidade à filosofia marxista, ao admitir que a “a dialética nos ensinou a desconfiar da quietude – que pode ocultar o conflito – e do equilíbrio – que pode ser instável. Ela nos ensinou que nem toda luta é ruim: algumas podem resultar em coisas novas e melhores” (apud Kangal, 4 Dez 2020). Bunge compartilhava a crença de que o materialismo dialético tem o mérito de enfatizar a novidade qualitativa ou a emergência.

Não sendo ele mesmo um marxista, o biólogo evolutivo Ernst Mayr (1904 – 2005) descobriu que sua própria concepção filosófica da biologia tinha surpreendentemente muito em comum com os princípios do materialismo dialético (ibid, 4 Dez 2020).
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(*) J. L. Cindra é professor de Física e de História da Ciência, na
UNESP - campus de Guaratinguetá – SP.

Bibliografia:

ENGELS, F., Anti-Dühring Herr Eugen Dühring’s Revolution in Science, Leipzig, 1878.

FOSTER, J. B., Engels´s Dialectics of Nature in the Anthropocene, Monthly Review, Nov 01, 2020.

KAAN KANGAL, Friedrich Engels and the Dialectics of Nature (Marx, Engels and Marxism), London: Palgrave Macmillan, 2020, xvi, 213 p.

KAAN KANGAL, A dialética emergentista de Engels, Revista Zero à Esquerda, 4 Dez 2020.

KRÄTKE, MICHAEL R. Friedrich Engels – el burgués que inventó el marxismo. Trad. Ángel Ferrero, Barcelona: Ediciones Bellaterra, 2020 www.bellaterra.coop