Apocalipse chinês

João Lanari Bo -

A percepção do tempo define uma civilização, dizem os compiladores. Em nenhum outro lugar que não a China a assertiva é tão verdadeira. São quatro mil anos de história, registradas por uma escrita praticamente idêntica e imutável, em meio a turbulências e catástrofes, perfídias e transcendências.

Num mundo como esse, fica claro que fantasmas tem outro status, outros tempos e espaços. Estão muito mais para interlocutores do inconsciente do que para assombrações estupefacientes.

A pessoa morre e volta para dialogar com os próximos que deixou, como nos filmes do tailandês sereno Apichatpong Weerasathakul. E agora, como no aprazível filme de estréia do chinês Zhang Hanyi, “Vida após a Vida”, com produção assinada por Jia Zhangke.

A morte é infortúnio para os que ficam, dizia Epicuro, mas os mortos volta e meia tem de lidar com pulsões dos vivos. Alguns voltam como cachorros sexopatas, outros como pássaros anônimos – no filme de Zhang, a principal volta é a encarnação temporária no corpo adolescente do próprio filho.

A mãe ausente voltando no corpo do filho, uma idéia simples e original, com uma incrível eficiência dramática – eis o enorme achado de Zhang, autor também do roteiro.

Humor absurdo e toque metafísico – como sugeriu uma espectadora no Cine Brasília – emergem desse contexto com fluidez, como se o tempo do filme fosse o próprio tempo dos personagens.

Contribuem, é claro, uma estupenda fotografia, reproduzindo um nevoeiro permanente com sutis colorações de verde e amarelo (poluição ?), na província de Shanxi, onde nasceu Jia Zhangke.

A vertigem do progresso chinês – escavadeiras, construções, terraplanagens – fornece a camada subjacente para a história, fábula que se organiza em torno do transplante de uma árvore, conforme o desejo da mãe-no-corpo-do-filho.

Será o apocalipse? para onde vai esse gigante chinês? não importa, ou não cabe nesse microcosmo que se revela no desenrolar da trama. Aqui, o que interessa são os pequenos acontecimentos, os ambientes, as pedras e as árvores, mas também a refração da luz, e o afeto quase epidérmico entre os personagens.

E o cinema, aquele que é a “música da luz”, como não se cansava de dizer Abel Gance.