A Criada: Filme-fetiche do coreano Park Chan-Wook
Cinema: A criada ou o olhar da outra

João Lanari Bo -

"A criada", filme do coreano Park Chan-Wook, funciona como uma elaborada narrativa a um só tempo transnacional e transexual: um produto, ou um cruzamento, que percorre e satisfaz as demandas da economia libidinal nesses tempos de pós-verdade em que vivemos.

Tudo é fetiche nessa história, esse artifício no qual Deleuze via “um signo da imagem-pulsão”, aquele objeto parcial que sobra e habita em algum lugar na memória – pode ser uma calcinha, um dedo, uma boca, um sapato, um pedaço de carne.

Ou um amor entre mulheres, visto pelo olhar erotizado (e masculino) do diretor.

E mais: a própria história já é um fetiche. Inspirado no bem-sucedido romance vitoriano-lésbico “Fingersmith”, de Sarah Waters, publicado em 2002, a ação – em todos os níveis – é transportada para a Coréia do Sul ocupada pelo japoneses, na turbulenta década de 30.

A criada, a coreana viradora, e a patroa, a japonesa herdeira, unem-se carnal e espiritualmente para destravar qualquer resquício colonial que se interponha.

Política e sexo se encontram, em um momento suspenso, transfigurado em fantasma.

Um fantasma erótico, por certo. A cena da banheira, onde as duas heroínas resolvem todas as pendências afetivo-sexuais, pontifica e transfigura a narrativa.

Uma cena, aliás, produzida e sublimada por olhares masculinos: do vigarista-sedutor, que articula o golpe milionário do baú, ao tio-pervertido, colecionador de novelas celeradas da França “dix-septième”, Marques de Sade em primeiro lugar. E do diretor, naturalmente.
Os apreciadores da sétima arte se lembrarão de um quase-homônimo filme, igualmente sado-masoquista, o fabuloso O Criado, de Joseph Losey, com Dirk Borgarde – o primeiro filme do cinema a abordar explicitamente a luta de classes, como dizia Godard.

O filme-fetiche de Park Chan-Wook, por sua vez, investe na inversão da narradora para resolver a questão social e surpreender o espectador.

Na primeira parte, é a colonizada, na segunda, a colonizadora. O que sobra, ao fim, é o olhar da outra, essa outra que está em algum lugar e em lugar nenhum, o inconsciente – feminino, por óbvio.